Neil Gailman rainha, Miramax nadinha.

Em 1996, o Studio Ghibli e sua empresa-mãe, Tokuma Shoten, contrataram um estadunidense chamado Steve Alpert como chefe da divisão internacional de animação da empresa. Trabalhando próximo aos fundadores do estúdio, Hayao Miyazaki, Toshio Suzuki e Yasuyoshi Tokuma, o “estrangeiro residente” desempenhou um papel fundamental em transformar o estúdio em uma empresa conhecida ao redor de todo o mundo.

Em sua autobiografia, “Sharing a House with the Never-Ending Man: 15 Years at Studio Ghibli” (“Dividindo uma Casa com o Homem Sem Fim: 15 anos no Studio Ghibli”, em tradução livre), Alpert detalhou suas experiências trabalhando com Miyazaki, lidando com executivos de Hollywood (inclusive, com o criminoso Harvey Weinstein), e com a superação de suas próprias diferenças culturais a fim de preservar corretamente os filmes. Em um excerto do livro que traduzimos abaixo, ele fala sobre os desafios de tradução, e dos desafios enfrentados pelo autor Neil Gaiman ao tentar escrever o roteiro adaptado para inglês para Princesa Mononoke:


Os japoneses podem ser péssimos tradutores. Livros já foram escritos apontando os erros mais grosseiros. E o principal problema da indústria do cinema é que ninguém checa as traduções. Outro problema é que o povo japonês ama a língua inglesa e está confortável demais com a sua própria versão dela. Eles são muito mais tolerantes com erros linguísticos do que alguém que seja de um país em que a língua seja nativa. Parece bom pra mim. O que poderia dar errado?

Eu estava determinado em fazer com que as traduções dos filmes do Studio Ghibli fossem feitas corretamente. Eu tenho um passado acadêmico e sempre quis ser um tradutor (de poesia e romances). Fazer isso da forma correta era uma matéria de orgulho pessoal. Além disso, a linguagem nos roteiros dos filmes do Ghibli era de uma profundidade no significado e beleza artística que merecia uma tradução correta. Mas então surge a questão: o que é exatamente uma tradução correta?

No início da jornada, você quer evitar erros diretos. Além disso, você quer que o diálogo traduzido soe natural para um ouvinte nativo que não conhece japonês. E isso é possível de se fazer, ainda que pessoas nativas não concordem exatamente com o que “soa natural”. Mas e o que fazer com as coisas que as pessoas japonesas falam e que ninguém mais no mundo faz, não havendo equivalentes em outras línguas? Ou com palavras japonesas que mesmo os japoneses têm dificuldade em explicar o significado e que Hayao Miyazaki adora colocar nos títulos dos seus filmes?

A Disney era a nossa distribuidora nos Estados Unidos. Um problema que não previmos era o fato de que a Disney utilizava suas traduções para “corrigir” problemas que encontrava nos filmes. Para a Disney, a tradução significava uma oportunidade de mudar todas as coisas que ela acreditava que não seriam apelativas para o público comercial nos EUA. Eles recheavam silêncios com diálogos que não estavam no roteiro original. Eles adicionavam pontos de trama para preencher histórias que achavam estar incompletas. Eles mudavam nomes para fazer com que parecessem mais americanos. E eles cometeram erros de tradução do tipo que um locutor nativo teria corrigido.

Discussões acaloradas aconteceram sobre como as traduções dos filmes do Studio Ghibli deveriam ser feitas. E essas discussões incluíram a participação de advogados. A Disney e o Studio Ghibli concordaram com o procedimento. As diretrizes foram estabelecidas e transformadas em um contrato. E a primeira versão em inglês de um filme do Studio Ghibli desenvolvida sob essas diretrizes foi Princesa Mononoke.

O processo de criação da versão dublada em inglês de Princesa Mononoke começou em Nova York com uma reunião na Miramax. Eu havia ouvido falar que a Miramax estava muito interessada em aprender como dublar filmes estrangeiros para o inglês. A Miramax era na época a principal importadora dos melhores filmes em língua estrangeira para os EUA. E eles imaginavam que seus filmes seriam ainda mais amplamente distribuídos e muito mais assistidos se eles oferecessem versões dubladas de qualidade desses filmes, em vez de apenas as versões legendadas, que eram as preferidas dos públicos das exibições de arte.

A equipe de produção designada para produzir a versão dublada de Princesa Mononoke se encontrou para a primeira reunião de roteiro em Nova York. E nenhum deles possuía experiência real criando uma versão dublada de um filme. O escritor Neil Gaiman havia sido contratado para escrever o roteiro em inglês. Ele pegou um voo direto de sua casa em Minnesota. A Miramax havia apresentado o filme a ele, além de fornecer uma cópia de trabalho rudimentar do filme para que ele pudesse chegar na reunião já familiarizado. A equipe da Miramax designada também assistiu ao filme várias vezes para identificar os problemas que queriam que Gaiman lidasse em seu roteiro.

Hayao Miyazaki havia me dado uma lista curta de itens para prestar atenção, coisas que podíamos ou não fazer em nossa versão dublada. Eu os relatei para o grupo. Os comentários de Miyazaki iam de conselhos na seleção de elenco até preocupações sobre certos detalhes que ele tinha certeza que ninguém ligaria ou perceberia. Essas são algumas das coisas que ele me disse:

  • Nem tente traduzir o título; é impossível.
  • Sem linguagem contemporânea ou gírias modernas.
  • Escolham boas vozes; as vozes são importantes.
  • Ashitaka é um príncipe. Ele fala bem e é formal; um pouco antiquado para o seu tempo.
  • Os Emishi são um povo que nunca chegou ao Japão moderno: exterminados e desaparecidos.
  • O povo da Senhora Eboshi é de classe muito baixa; excluídos; ex-prostitutas, traficantes, trapaceiros e cafetões reformados; leprosos. Mas ela não é; ela veio de uma classe diferente.
  • Jigo Bo diz que trabalha para o Imperador. O Imperador não é como pensamos sobre ele hoje. Ele teria vivido na pobreza, ganhando a vida vendendo a sua assinatura. Para quem Jigo realmente trabalha? Não sabemos. Ele tem um documento assinado pelo Imperador. Isso não significa nada.
  • As coisas que parecem rifles NÃO SÃO rifles. Rifles são outra coisa. Esses são mais como canhões portáteis. Não traduzam como rifles. Eles não são rifles. Não usem a palavra rifle.

E então surgiram as perguntas da Miramax.

“Esse cara, Senhor Asano… Quem é ele? Ele é um cara bom ou ruim? Para quem estavam trabalhando os samurais? Por que eles estão atacando uma vila? Por que eles estão atacando a Senhora Eboshi? Ela é uma vilã, certo? Quem é esse tal de Jigo e para quem ele trabalha? Por que ele quer a cabeça do Deus Cervo? Ele é um mocinho ou vilão? Por que o Deus Cervo é um deus? É uma coisa japonesa? Ele é um deus bom ou ruim?”

Eu expliquei que Miyazaki não faz mocinhos e vilões em seus filmes, mas que tenta apresentar uma visão mais cheia de nuances da natureza humana. Eu disse que não sabia exatamente se havia respostas claras para seus questionamentos, e que parte da intenção de Miyazaki era que pensássemos sobre isso, ou que ficássemos satisfeitos com a incerteza de não saber ao certo.

Uma mulher com um distinto sotaque do Brooklyn então perguntou: “Então por que eles chamam esse cara Ashitaka de príncipe?”

E Neil Gaiman respondeu: “Porque ele é um príncipe.”

“Sim”, ela respondeu, “mas como nós sabemos que ele é um príncipe? Ele vive nesse vilarejo imundo. Suas roupas são trapos. Sua pequena vila fica no meio do nada. Como ele pode ser um príncipe?”

“Nós sabemos que ele é um príncipe porque todos se referem a ele como Príncipe Ashitaka”, respondeu Gaiman. “Ele é um príncipe porque seu pai era rei e porque ele será rei após a morte de seu pai. Os criadores do filme disseram que ele é um príncipe. Ele é um príncipe. Apenas é”.

Melhor princeso <3

Talvez por Gaiman ser britânico, ele se sinta mais confortável com o conceito de um príncipe de verdade ou princesa não ter nada a ver com a versão da Disney de A Bela Adormecida. Eu teria pensado que os estadunidenses, especialmente nova-iorquinos, que conhecem a história de Anastasia dos filmes, e que conhecem donos de lavanderias, de restaurantes e professores de línguas que são parentes da realeza de outros países, seriam mais receptivos à ideia de um ex-membro da família real em uma fase ruim, reduzido a circunstâncias inferiores.

A discussão entre Gaiman, insistindo que um príncipe poderia continuar sendo um príncipe, apesar de suas circunstâncias inferiores, e a mulher da Miramax, que insistia que o público não aceitaria um príncipe em farrapos cujo reino era uma vila, continuou.

Gaiman: Olha, ele ser um príncipe é importante para a história. É parte do seu personagem. Eu acredito que o Sr. Miyazaki decidiu. Nós devemos adaptar o seu filme para o público americano, e não mudá-lo.

Miramax: Mas o público não vai entender que ele é um príncipe.

Gaiman: É claro que vai. O público não é estúpido. Se fosse, não entenderia o resto do filme também.

Nós seguimos em frente.

O roteiro original de Gaiman era incrível. O diálogo fluía suavemente. As coisas que ficavam estranhas em tradução direta do japonês receberam de volta a força e fluidez da versão original de Hayao Miyazaki. Coisas que funcionavam bem em japonês, mas não em inglês, foram ajustadas para restaurar a vividez que a tradução direta havia roubado delas. Por exemplo, em uma cena em que Jigo Bo reclama sobre o okayu (mingau de arroz) dizendo que tem gosto de água quente. Isso soa forte em japonês, mas bobo em inglês. Gaiman reescreveu a tradução como “Essa sopa tem gosto de mijo de cavalo. Um mijo ralo de cavalo”.

Gaiman também fez algumas mudanças para satisfazer Harvey Weinstein, chefe da Miramax. Essas eram mudanças que a equipe de produção da Miramax sentia que iriam ajudar ao público americano a entender coisas que não estavam claras na versão original de Miyazaki. A motivação misteriosa de Jigo Bo, deixada em aberto no filme, foi apresentada na versão dublada em inglês com a inclusão da frase “O Imperador me prometeu um palácio e uma montanha de ouro pela cabeça do Deus Cervo”. O relacionamento entre Jigo Bo e a Senhora Eboshi também recebeu esclarecimentos, ao adicionar as frases: “O Imperador ordenou que você mate o Deus Cervo de uma vez. Ele não quer mais esperar. Você acha que o Imperador liga para as suas patéticas ferragens?”. Não existe nada remotamente próximo a essas linhas, ou ao que elas implicam, na versão original do filme de Miyazaki.

Mas não quer dizer que Gaiman não entendia nada disso ou que não fosse simpático a se manter fiel ao trabalho de Miyazaki. Ele recebeu ordens da Miramax, e a preocupação principal de Harvey Weinstein, ou uma delas, era fazer com que o filme se tornasse acessível para a maior parte do público norte-americano. O problema de Gaiman era ter que transitar sobre a linha tênue entre o que Harvey queria e a possibilidade de estragar o filme de Hayao Miyazaki.

Na primeira versão do roteiro de Gaiman, a Miramax recebeu o lado artístico do que queria. Gaiman não percebeu que para conseguir o que queria, a Miramax iria pegar seu roteiro e alterá-lo sem qualquer comunicação entre eles. A palavra final sobre o roteiro era do Studio Ghibli, então nós recebemos ambas as versões enquanto o estúdio revisava esses roteiros.


Texto traduzido e adaptado da Polygon.

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