Entenda mais sobre o “Efeito Proteu”.

O texto abaixo é a tradução de um relato de Laken Brooks para o jornal Washington Post e contém spoilers sobre a trama do jogo “Gone Home”.

Laken Brooks é uma doutoranda em Língua Inglesa pela Universidade da Flórida, onde estuda humanidades digitais e história LGBT, entre outros temas. Ela é escritora freelancer, e escreve principalmente sobre tecnologia para o bem-estar. Seus textos podem ser encontrados nas páginas da CNN, Good Housekeeping, Atlas Obscura, Inside Higher Ed, Lambda Literary, entre outras publicações digitais.


O beijo lésbico foi um acidente. Em 1999, os desenvolvedores de The Sims apresentaram um protótipo do jogo em uma cabine da E3 (Electronic Entertainment Expo), principal convenção de jogos e tecnologia do mundo. No jogo, os jogadores simulam uma vida virtual, podendo criar seu avatar, conhecer amigos e interesses românticos e criar um lar. Patrick Barrett, um homem gay, treinou a inteligência artificial que determinava os relacionamentos românticos dos personagens em The Sims.

Barrett estava trabalhando com o código antigo. Ele não sabia na época, mas sua equipe havia decidido limitar as escolhas românticas no jogo a interações heterossexuais. Então quando a simulação no evento mostrou duas mulheres se casando, a notícia de personagens lésbicas se espalhou rapidamente pela E3, cujo público no ano era de cerca de 60 mil pessoas.

O casamento homossexual em The Sims apresentava uma liberdade sexual impossível em outros jogos que estavam sendo apresentados na E3, e que tampouco era reconhecida legalmente nos Estados Unidos na época. Hoje, diversos jogos como Stardew Valley e Long Story permitem que os jogadores busquem relacionamentos LGBTs ou utilizem pronomes não-binários. Simuladores de vida cotidiana e jogos de RPG continuam a expandir a diversidade nos avatares e relacionamentos.

E em vários casos, esses jogos ajudaram jogadores LGBT a sentir que eles eram vistos pela primeira vez.

“Eu realmente senti que era uma pessoa poderosa”

Steven Arnold é um ávido jogador de Dragon Raja e Black Desert Online, e não apenas pela jogabilidade. Os dois títulos para celular possuem robustos sistemas de avatar, em que Arnold pode alternar entre um grande número de cortes de cabelo e roupas, independentemente se está jogando como um personagem “feminino” ou “masculino”.

“Apesar de agora eu já ter pintado meu cabelo de todas as cores que existem sob o sol, testado maquiagem e brincado com diferentes modas e estilos, levou algum tempo até eu chegar a este ponto”, afirmou Arnold.

Algo tão pequeno quanto brincar com a aparência de um avatar, mesmo que eu apenas possa ver as suas costas durante todo o jogo, causava uma sensação realmente de reafirmação.

Escolher uma maquiagem ou uma cor maluca para o cabelo do meu avatar foi pra mim uma forma de afirmar meu próprio gênero, ainda que isso não fosse algo que eu realmente estivesse pronto para fazer no mundo real ainda (…) Me deu uma válvula de escape em que eu realmente sentia que era uma pessoa poderosa e o protagonista da minha própria história.

A habilidade de se expressar através de um jogo pode ajudar uma pessoa LGBT a se sentir mais confiante em sua vida real. Muito disso se deve a um fenômeno denominado de “Efeito Proteu”. Nomeado em homenagem à divindade da mitologia grega conhecida por mudar de forma, o Efeito Proteu acontece quando pessoas em ambientes virtuais – jogos eletrônicos, salas de bate-papo, entre outros – começam a adotar características de suas representações virtuais. Assim como Proteu podia ter várias formas, jogadores podem tentar novas identidades, rostos e vidas.

Em 2007, o departamento de comunicação da Universidade de Stanford começou a estudar como o Efeito Proteu impacta os jogadores. Os pesquisadores Nick Yee e Jereme Bailenson conduziram dois experimentos para observar como a aparência física de um avatar poderia influenciar o comportamento do jogador no jogo. No primeiro experimento, jogadores classificaram diferentes avatares de acordo com o quão atraentes eles seriam. Então, cada participante recebeu um avatar para brincar em um ambiente virtual, em que deveriam interagir uns com os outros. Os jogadores com os avatares considerados mais atraentes agiam de forma mais confiante no jogo do que os outros participantes: andando mais perto dos outros avatares no ambiente de realidade virtual, revelando mais informações pessoais sobre si mesmos e puxando mais conversas.

No segundo experimento, Yee e Bailenson também estudaram se um jogador podia mudar o seu comportamento de acordo com a aparência física de seu avatar. Dessa vez, os participantes fizeram parte de uma negociação em realidade virtual. Jogadores com avatares maiores demonstraram exigir uma parte maior do dinheiro, enquanto jogadores com avatares menores acabaram aceitando valores menores na negociação.

Esse estudo tinha como foco a aparência física de um avatar, mas os pesquisadores continuaram a estudar como traços mais abstratos como a identidade de gênero, sexualidade e atitude também podem impactar o comportamento do jogador no jogo, e por vezes, na vida real.

“Apesar de autotransformações extremas serem caras (por exemplo, cirurgias plásticas) ou difíceis de alcançar (por exemplo, cirurgias de readequação de gênero) em nossos corpos físicos, em nenhum lugar a autorrepresentação é mais flexível e fácil de alterar do que em ambientes virtuais onde os jogadores podem escolher ou personalizar os seus avatares – representações digitais de si mesmos”, relataram Yee e Bailenson no estudo publicado por Stanford.

Quem escolhemos ser modela a forma como nos comportamos (…) Nossos avatares podem mudar a forma como nos comportamos.

Essas descobertas possuem ramificações óbvias para jogadores com histórias de marginalização, ou marginalizadas por suas identidades sexuais e de gênero. Da segurança de seus aparelhos celulares ou das telas de seus computadores, jogadores podem se transformar e viver vicariamente através de avatares com traços físicos que representem o seu “eu ideal”: andrógino, feminino, masculino, ou – em jogos como o lançamento indie 2064: Read Only Memories – algo completamente fora da noção binária de gênero.

O efeito Proteu é uma espécie de profecia psicológica autorrealizada. Muitas pessoas LGBT querem testar diferentes formas de expressão de seu gênero. Porém, esses indivíduos podem se sentir inseguros ao utilizar maquiagem ou um penteado diferente em público. Afinal, pelo menos 46% das pessoas trans e não-binárias já passaram por assédio em público por conta da sua expressão de gênero, de acordo com uma pesquisa realizada nos EUA em 2015. Cerca de 46% das pessoas LGBT também mantém em segredo sua identidade no ambiente de trabalho, de acordo com um relatório publicado em 2018 pela Human Rights Campaign Foundation.

Pessoas LGBTQIAP+ podem se sentir mais confortáveis com a sua identidade quando encontram modelos de comportamento da comunidade, algo que eles podem criar para si mesmos nos jogos eletrônicos.

O efeito Proteu pode ajudar pessoas queer a se sentirem mais confiantes após visualizarem sua versão ideal em um RPG ou simulador de vida cotidiana, ainda que temam sofrer assédio ou discriminação em público.

Kaehla Michele Bryant, outra jogadora, reconhece o efeito Proteu funcionando em sua própria vida, já que ela começou a buscar relacionamentos LGBT em jogos eletrônicos. Quando criança, ela aceitou que era queer enquanto jogava The Sims. No jogo, ela podia fazer o que achava jamais ser possível: ter uma namorada.

“Eu podia aceitar que não era nem um pouco heterossexual”, afirmou Bryant.

Isso me deu um caminho para explorar a atração que eu sentia pelas pessoas do meu próprio gênero sem precisar ‘sair do armário’.

Bryant valorizava sua Sim como um modelo de comportamento queer. E com o passar do tempo, jogar a ajudou a se sentir mais confortável em expressar sua identidade fora do jogo.

“Algo muito profundo e bonito”

Mesmo hoje, muitos jogadores têm dificuldades para encontrar personagens queer autênticos ou representativos nos jogos. Em Assassin’s Creed Syndicate, os jogadores rapidamente perceberam que o protagonista Jacob Frye não possuía qualquer interesse romântico feminino. Os produtores do jogo confirmaram posteriormente que Frye é bissexual, mas os jogadores precisaram esmiuçar boa parte dessa informação com base em dicas sutis.

Para que jogadores LGBT possam receber os benefícios do efeito Proteu, eles precisam ser capazes de se identificar com personagens e relacionamentos queer em seus jogos. Enquanto Bryant continuava jogando The Sims, por exemplo, ela podia se ver representada em sua personagem LGBT. E foi assim que ela foi se tornando mais confortável com a ideia de ter parceiras do mesmo sexo na vida real.

Andrea Medina, uma doutoranda que está desenvolvendo sua tese sobre identidade nos jogos eletrônicos, explica como outro jogo chamado Gone Home surpreende jogadores heterossexuais ou não com uma história sobre se revelar. O jogo começa com a protagonista voltando para casa após um ano fora, mas sua família não está presente para recebê-la. Os jogadores devem explorar caixas e bilhetes pela casa vazia, para lentamente descobrir que Sam, a irmã da protagonista é lésbica. Alguns jogadores acreditam que ela cometeu suicídio. Uma carta de despedida e uma banheira manchada de vermelho apontam para uma tragédia em potencial, que reflete os milhões de jovens LGBT que pensam em suicídio anualmente. Mas, felizmente e na verdade, a conclusão do jogo é muito mais saudável e feliz.

ALERTA DE SPOILER DO FIM DE GONE HOME *** A banheira vermelha está manchada por tinta de cabelo, e não por sangue. Essa é uma narrativa orgânica que “transforma algo que você assume ser tenebroso em algo profundo e bonito”. Você descobre lentamente como a sua irmã se apaixonou e foi embora com a namorada. E no final do jogo, você sabe que a sua irmã seguiu seu coração, apesar da desaprovação da família. *** FIM DO SPOILER

A descoberta é similar a descobrir um segredo sobre alguém próximo a você, ter a confiança dessa pessoa e aceitá-la como ela realmente é, afirma Medina. Para jogadores LGBTs que nunca se sentiram aceitos, essa história traz esperança.

Quando o mundo real deixa de fornecer para as pessoas LGBTQIAP+ a oportunidade para expressarem seu gênero e sexualidade, o mundo virtual pode ser como um santuário.

Pessoas que podem abertamente expressar sua identidade são menos deprimidas, de acordo com estudo publicado pela The Atlantic em 2013. E elas também possuem menos risco de cometer suicídio do que seus pares que guardam isso para si mesmos. E quando jogadores LGBT não podem se expressar em suas vidas diárias, eles podem encontrar uma forma de viver através de avatares, como aqueles de Arnold em seus jogos preferidos, ou nos relacionamentos dentro do jogo como os que reafirmaram a sexualidade de Bryant.

Assim como o beijo lésbico sacudiu a E3 em 1999, jogos eletrônicos podem criar um mundo onde as pessoas podem ser elas mesmas. Felizmente, os relacionamentos queer e a diversidade de gênero nos jogos de hoje não são acidentais.

Mundos virtuais inclusivos podem fazer com que os jogadores LGBTQIAP+ se sintam visíveis pela primeira vez.

E para essas pessoas que podem explorar de forma segura e celebrar as suas identidades em um espaço virtual, os jogos eletrônicos fazem com que o futuro pareça um pouco mais promissor e acolhedor.


Texto traduzido e adaptado do Washington Post.

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