Mamoru Hosoda atualiza um conto de fadas clássico com um toque de mundo virtual.

O texto a seguir é uma tradução da entrevista de Brian Ashcraft com o diretor Mamoru Hosoda. Desta forma, mantivemos a pessoalidade e expressões utilizadas no texto original, a fim de alcançar a maior fidelidade possível.

Enquanto assistia Belle, o último longa de Mamoru Hosoda, dois filmes continuavam correndo pela minha mente: a animação da Disney A Bela e a Fera, e Summer Wars do próprio Hosoda – e por um bom motivo. Belle pega um conto de fadas clássico e o filtra pelo mundo virtual em que vivemos.

“Sempre gostei da história de A Bela e a Fera desde criança”, Hosoda me disse no final de 2021, pelo Zoom. Dias antes, eu assisti Belle e gostei tanto quanto seus outros filmes, como Crianças Lobo, O Rapaz e o Monstro e Guerras de Verão (Summer Wars). Eu não estava sozinho nessa reação. Quando Belle foi exibido no Festival de Cinema de Cannes, o filme foi aplaudido de pé por 14 minutos.

Belle conta a história de Suzu, uma garota de 17 anos que mora na zona rural da província de Kochi, quando de repente se torna uma sensação de canto na internet durante a noite em um mundo virtual conhecido como “U”. Lá, ela assume a persona de “Belle” e encontra uma misteriosa “besta” por quem desenvolve sentimentos.

Suzu e sua contraparte online, Belle. Imagem: ©2021 Studio Chizu

Se você leu ou viu qualquer versão de A Bela e a Fera, Belle cobre território familiar por causa do design, mas também confronta o melhor e o pior da internet, incluindo o poder de conexão online, a liberdade do anonimato e até mesmo a toxicidade das seções de comentários. O filme está bem a cara da premiada filmografia de Hosoda, que é recheada de histórias do universo virtual, bem como aquelas que exploram a interação entre animais e os humanos.

A Fera. Imagem: ©2021 Studio Chizu

“Detesto a ideia de dar importância apenas aos humanos”, disse Hosoda para o Kotaku, acrescentando que nosso mundo não é apenas o mundo dos humanos. “Caramba, os humanos nem sequer são a maioria.” É por isso que há muito tempo ele considera a história de A Bela e a Fera tão atraente e por que a história há muito influenciou seu trabalho. “Algo sobre Crianças Lobo e O Rapaz e o Monstro são semelhantes a A Bela e a Fera”, disse ele. “Por exemplo, uma mulher se apaixonando por um homem-lobo [em Crianças Lobo] é como a Bela e a Fera.”

A Bela. Imagem: ©2021 Studio Chizu

Mas Belle é mais do que simplesmente uma releitura moderna do clássico conto de fadas francês do século XVIII. Hosoda explicou que com este filme, ele está fazendo honkadori. Na poesia tradicional japonesa, honkadori faz alusão a um poema mais antigo e amplamente conhecido. Esta é uma maneira para ele empurrar a história para a frente e explorar novos terrenos. “Mesmo que os períodos de tempo mudem, a essência de A Bela e a Fera não muda”, disse Hosoda.

Então, quando novas versões da história são feitas, o importante são as coisas que já são e as que não são alteradas. Então, por exemplo, uma coisa que não mudou da versão da Disney é a cena de dança. Claro, também estava na versão do século 18.

O filme evoca uma cena icônica de A Bela e a Fera. Imagem: ©2021 Studio Chizu

A Bela e a Fera mais do que meramente influenciou a sensibilidade de Hosoda. Isso o motivou. Se não tivesse visto a versão animada da Disney, ele poderia ter deixado o negócio todo de lado. “Quando entrei na Toho Animation, o trabalho era muito difícil”, disse Hosoda. “Pensei em desistir de tudo e desistir logo no meu primeiro ano. Eu me perguntava se havia outro emprego melhor.” Naquela época, Hosoda viu A Bela e a Fera. “Naquela época, parecia uma lufada de ar fresco para a Disney”. Ele ficou maravilhado com o trabalho de Glen Keane e adorou a trilha sonora de Alan Menken. Para Hosoda, não era A Bela e a Fera da Disney, era de Glen Keane. O filme, segundo Hosoda, não era voltado para crianças e reviveu a casa que Mickey construiu. “A Bela e a Fera não era um chapéu velho. Parecia novo. Lembro-me de sentir isso”. E a Disney não foi a única a ter um segundo fôlego. Hosoda também.

Hosoda saiu do teatro, reenergizado e pronto para trabalhar.

Isso me fez pensar que, se eu pudesse fazer algo maravilhoso como isso, deveria ficar na animação. Senti que queria fazer minha própria A Bela e a Fera – e fazer isso acabou levando trinta anos.

À primeira vista, a influência do filme parece prontamente aparente. Por exemplo, a personagem Belle tem um certo toque Disney. Hosoda trouxe especificamente o famoso animador Jin Kim, que trabalhou na Disney entre 1995 e 2016, para o design de personagens de Belle. “Kim é uma lenda da animação moderna da Disney, então, é claro, não acho que seja uma coisa ruim se seu trabalho evoca a Disney.” Mas mais do que simplesmente gostar da Disney, ele é fã de Jin Kim. “Ele é um tremendo talento. Jin Kim não é Disney. Disney é Jin Kim-esque”. Hosoda acrescentou com uma risada: “Jin Kim é Jin Kimesque”.

Tematicamente, o trabalho de Hosoda não explorou apenas a relação entre animais e humanos. Poucos criadores de anime se interessaram tanto pelo mundo digital quanto Hosoda. Em Belle, Hosoda mostra o impacto das mídias sociais e como vivemos nossas vidas virtuais. “Acho que a mídia social está tendo efeitos bons e ruins”, disse ele. “Os elementos ruins, de notícias falsas a crianças obcecadas em obter curtidas, são numerosos”. Mas ele é realista sobre os tempos em que vivemos.

O que quero dizer é, devemos pegar os celulares dos jovens e dizer a eles para trabalhar arando terra? Isso não vai acontecer. Para os jovens, eles não apenas precisam viver suas vidas em um mundo onde a internet existe, mas também precisam fazer seu próprio caminho e se descobrir. Como pais, precisamos apoiá-los.

Belle dificilmente é a primeira vez de Hosoda usando o mundo virtual como cenário – e não será a última. Este é um cenário que ele talvez tenha usado mais famosamente com Summer Wars. Mas mesmo assim, não era um território novo. Em 2000, Hosoda dirigiu Digimon Adventure: Our War Game!, que compartilha muitas semelhanças. O que torna sua representação do mundo virtual tão interessante é que ela evolui. Quando Summer Wars foi lançado em 2009, por exemplo, pessoas de todas as faixas etárias estavam acessando a internet – algo que o filme reflete. No Japão, o serviço de internet i-Mode da Docomo para telefones celulares realmente trouxe a internet para as massas. “Então é por isso que todos os personagens de Summer Wars, dos mais novos aos mais velhos, estão ficando online, e foi isso que tornou a história possível. Ir em uma aventura na internet tornou-se realidade. É por isso que eu fiz o filme”.

Perguntei a Hosoda se ele planeja fazer uma sequência de Summer Wars para acompanhar esses temas – uma pergunta que todos, de meus filhos a amigos, queriam que eu fizesse. “Se você está perguntando o que é Summer Wars 2, bem, é esse filme, Belle”, respondeu Hosoda. “Summer Wars é realmente Digimon Adventure: Our War Game! 2, e assim, Belle é Summer Wars 2.”

Esses filmes, como as influências de Hosoda, informam uns aos outros. Eles evoluem e mudam. Eles abordam grandes temas clássicos e, ao mesmo tempo, os dias atuais. É por isso que Mamoru Hosoda continua sendo um dos cineastas mais relevantes da atualidade. “Há uma conexão definitiva com esses filmes”, disse Hosoda. “Usar a internet como cenário é algo raro. Para mim, é algo que vou continuar. É o trabalho da minha vida”.


Texto traduzido da Kotaku, com autoria de Brian Ashcraft.

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