Jogo que retrata a fuga de um escravizado até o Quilombo de Palmares está em campanha aberta

Ao falar a palavra “games”, o que vêm na sua mente? É provável que venha imagens de pessoas atirando, heróis resgatando princesas ou mesmo seres místicos lutando em equipe para alcançar o objetivo. Agora reflita: há algum personagem negro(a) no jogo que você pensou?  

Se a resposta é não, é uma prova de que há uma grande lacuna ao abordar temáticas relacionadas sobre a questão racial nos jogos eletrônicos. Apesar disso, desenvolvedoras estão lutando contra produzir games que reforçam esse estereótipo, trazendo reflexão e representatividade.

É o que a Sue the Real, game estúdio brazuca quer fazer ao colocar Soares e Andala, personagens que que lutam para sobreviver no sistema escravista. Os desenvolvedores pretendem lançar o jogo Angola Janga: Picada dos Sonhos, obra derivada da HQ de Marcelo D’Salete.

Imagem do game Angola Janga – Picada dos Sonhos. Foto: Divulgação

A equipe é composta pela programadora Raquel Motta e o game designer  Marcos Silva. Desde quando criaram o estúdio o casal produz games que trazem questões afro brasileiras e também apoio a causas animais. Angola Janga : Picada dos Sonhos retrata os acontecimentos relacionados ao Quilombo dos Palmares.

Em entrevista ao Garotas Geeks, Raquel Motta explicou que a ideia do jogo veio na edição de 2018 do Spcine em que o evento formentava a criação de games inspirados em quadrinhos. “Tivemos contato com diversas obras e escolhemos o Angola Janga principalmente por contar uma história relacionada ao Quilombo de Palmares e seus personagens, foi um encontro feliz de oportunidades”, diz a programadora.

Raquel e Marcos dando entrevista durante o Perifacon. Fonte: Divulgação

O jogo chegou a ser finalista do edital e apesar de não terem ganho, a Sue the Real decidiu seguir adiante com o Angola Janga. Para o projeto foram chamados Larissa Mello (artista 2D) e José Wilson (animador 2D) para compor a equipe.

O game se baseia na HQ de Marcelo D’Salete, quadrinista, ilustrador e professor. Mestre em história da arte, é conhecido por fazer quadrinhos que retratam a história do movimento negro no Brasil pelo olhar dos povos negros. Em 2017 lançou Angola Janga – Uma História de Palmares após pesquisar durante 11 anos sobre a vida de Zumbi dos Palmares.

Capa da HQ Angola Janga. Fonte: Divulgação

A empresa recebeu o apoio do autor para o projeto, que ajudou em todo o processo do game. “Sentimos constantemente responsabilizados por transpor de forma coerente os mais de dez anos de pesquisa que a obra possui”, diz Raquel.

“Foi realmente incrível ver que ao unir linguagens diferentes podemos ter obras interessantes” 

A programadora afirma ainda que desenvolver uma obra tão rica de cultura e história é uma oportunidade única de aprendizado. “Esse edital nos deu a possibilidade de sair um pouco do mesmo ciclo e foi realmente incrível ver que ao unir linguagens diferentes podemos ter obras interessantes nascendo disso”, comenta.

Além do quadrinho, o grupo tira inspiração para criar o jogo através de ritmos, influenciadores e artistas que abordam a temática sobre resistência e cultura negra.

“Gostamos de acompanhar o Ale Santos com suas necessárias treads sobre histórias afro-brasileiras. O Rincon Sapiência nos inspira muito, suas músicas falam com o povo preto, nos deixa em alerta ao mesmo tempo que diverte. Já em relação aos games, nosso jogo tem fortes referências de Lara Croft Go, Kingdom da Raw Fury e Valiant Hearts. Em jogos brasileiros nossas maiores inspirações são A Nova Califórnia do estúdio Game & Arte, jogo esse baseado em um conto de Lima Barreto e Árida do estúdio baiano Aoca Lab, esse com uma temática sobre o sertão e suas vivências”.

Reflexos de uma obra atemporal

Imagem do game Angola Janga – Picada dos Sonhos. Foto: Divulgação

Desenvolver um jogo que retrata a vida de pessoas que viveram há mais de 300 anos traz uma observação para a Sue The Real de que, apesar das diferenças de comportamento e avanços tecnológicos, o preconceito com negros insiste em perdurar na sociedade brasileira, seja em pleno 2019 ou em 1600. “Nós estamos vivendo parte da reflexão que a própria obra do Marcelo D’Salete nos traz sobre ancestralidade negra, permitindo perceber que o nosso processo de criação está intrinsecamente ligado as dificuldades de viver num país racista”.

Em 2015, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que 54% dos brasileiros se declaram negro, mas apenas 17% pertencem à parcela mais rica da população. Esses dados são um reflexo dos desafios que a Sue the Real sente ao tentar buscar um público-alvo para o jogo.

“Tivemos muita dificuldade de encontrar pessoas que levantem uma bandeira e digam ‘Eu sou um jogador(a) negro(a)’, nos EUA nós conseguíamos enxergar diversas pessoas que levantavam em suas streams e postagens as hashtags ‘#blackgamer’ e ‘#blackgirlgamer’. Talvez isso parta da problemática que muitas pessoas não se consideram gamers, uma vez que isso é tido como um perfil profissional e principalmente pelo não-orgulho de se assumirem com a sua raça, afinal no país em que a cada 23 minutos um jovem preto morre não estabelece uma relação direta de ganho em se reconhecer assim. No final estamos encontrando outras vias para chegar ao nosso público, tateando alguns grupos e seguimentos e principalmente pensando em como podemos mudar isso”, desabafa Raquel.

Apoio

Apesar do longo caminho das pedras, a jornada dos desenvolvedores vêm trazendo boas oportunidades. A gamestudio expôs o Angola Janga durante o evento da Perifacon, a “Comic Con da Favela” que aconteceu na periferia na Zona Sul de São Paulo (SP). Lá  eles tiveram a oportunidade de mostrar o jogo para um público que tem sede em histórias e mitologias pouco exploradas nos games. 

Visitantes jogando Angola Janga durante a Perifacon. Foto: Divulgação

O game também abriu a chance para que Raquel e Marcos de atravessarem o oceano até Luanda, capital da Angola, para fazer um intercâmbio cultural.

“Acreditamos com toda a força do coração que essas oportunidades são conquista de todos que vieram antes de nós” – Raquel Motta

Porém eles precisam de dinheiro para custear a viagem e a estadia até o país africano. A dupla abriu uma campanha de financiamento coletivo para arrecadar a quantia necessária e realizar o sonho.

“Essa viagem não é só nossa conquista, falamos tanto de ancestralidade no nosso jogo e acreditamos com toda a força do coração que essas oportunidades são conquista de todos que vieram antes de nós, ao mesmo passo que seria muito incrível se conectar com a nossa ancestralidade no continente africano”, diz Raquel.

A ideia é apresentar o game para o público, estudar a cultura e realizar um documentário sobre a produção e bastidores e Angola Janga: Picada dos Sonhos.

A campanha vai até até o final deste mês e você ainda pode apoiar o projeto clicando aqui.

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