Estupros ficam menos intragáveis quando escritos por mulheres?

Por volta de uma hora após o início do filme, Holiday (2018) – primeira obra escrita e dirigida pela cinegrafista sueca Isabella Eklöf – apresenta uma cena em que uma jovem mulher que havia se juntado ao seu namorado traficante e sua comitiva em um resort turco no mar Egeu e é vítima de violência sexual. Outra jovem é estuprada, duas vezes, nas primeiras cenas de The Nightingale (2018), segundo filme da escritora e diretora australiana Jennifer Kent, famosa por O Babadook (2014). Nos últimos anos também assistimos a heroína de Vingança (2017), de Coraline Fargeat, ser estuprada e deixada para morrer por seu amante e colegas. Uma estudante de arte ser sexualmente abusada em M.F.A (2017), de Natalia Leite. E uma estudante de medicina ser estuprada em American Mary (2012), de Jen e Sylvia Soska.

E o que estes filmes têm em comum não é apenas a violência sexual contra personagens femininas, mas o fato de todos eles serem dirigidos por mulheres. O que está acontecendo? Por que as mulheres não podem fazer filmes sobre outras coisas? Claramente elas não estão tentando superar os homens em seu próprio jogo, ao demonstrar que podem abusar de suas personagens femininas de forma tão terrível quanto suas contrapartes masculinas e misóginas. Será que todas essas cenas são realmente necessárias?

Aisling Franciosi em The Nightingale, da diretora Jennifer Kent. Foto: Kasia Ladczuk

“Nesta situação, eu senti que era absolutamente necessário”, afirmou Eklöf, “porque eu nunca vi isso ser apresentado de uma perspectiva feminina”. Holiday é de fato algo diferente – um filme de gangster apresentado pelo ponto de vista da mulher do gangster, que descobre existir um preço a se pagar pela vida de luxúria que ela quer levar, ainda que não seja necessariamente o preço que imaginamos.

Todos avaliamos os prós e contras de estar em um relacionamento abusivo. Se a alternativa for estar completamente sozinha no mundo, para ela é melhor ter o clã, a família, e eu acho que muitas pessoas, homens e mulheres, fazem essa escolha.

Jovens mulheres em uma das notórias lavanderias de Madalenas da Irlanda são abusadas por freiras na obra de estreia de Aislinn Clarke, A Maldição da Freira (2018). A diretora afirmou que:

“Assistir a uma cena de estupro, humilhação ou outros tipos de brutalidade contra uma personagem feminina é geralmente uma experiência diferente para mulheres do que para homens”

E continua: “e pelo fato de todos os diretores terem começado como espectadores, nós tendemos a dirigir estas cenas de forma diferente, também”. Seu filme também apresenta uma adolescente grávida, cujo bem-estar é considerado secundário pela Igreja Católica em relação ao do feto. Isso é mostrado claramente quando ela entra em trabalho de parto, acorrentada à sua cama, e a câmera permanece focada em seu rosto, encorajando o público a sentir empatia por ela, em vez de compartilhar o aterrorizado ponto de vista do padre que é o protagonista do filme. E a diretora afirmou:

“O problema não é que eventos brutais são apresentados em filmes. É como os eventos são apresentados e onde o diretor resolveu manter o foco da audiência que importa. Diretores são curadores do que o publico irá ver, ouvir e sentir.”

Ainda existe uma persistente crença de que a violência e a brutalidade são um campo dos cinegrafistas e públicos masculinos, e Eklöf aponta que estatisticamente, mais homens do que mulheres se envolvem ou são sujeitados a violência.

“Eu acho que é uma parte muito importante do movimento feminista falar sobre os direitos dos homens, mas não da forma como a direita afirma, mas sim no sentido de uma liberação masculina de sua toxicidade, também.”

Mas as mulheres possuem naturalmente uma relação mais íntima com sangue, dor e transformação física, que se combinam no processo de que a menstruação leva à gravidez e por fim o parto. Filmes de terror ou suspense violento são a moldura ideal para que as mulheres cineastas possam abordar esses temas e outros problemas relativos à posição da mulher na sociedade, algo que pode ser desanimador de abordar em dramas mais realistas. No entanto, em um formato do gênero, eles podem operar em um nível visceral, mais do que intelectual.

Prevenge, da diretora Alice Lowe.

E as experiências femininas podem injetar sangue novo – literalmente – em tropos antigos e desgastados. Em Prevenge (2016), Alice Lowe, dirigindo a si mesma em sua estreia como diretora, grávida, rasga seu caminho em meio ao resto do elenco, mas o terror é menos relevante do que os aspectos físicos e psicológicos da gravidez, de uma forma que nenhum diretor homem jamais imaginou conseguir fazer. Nicole Kidman é chutada nas costelas até estar preta e azul em O Peso do Passado (2018), de Karyn Kusama, mas seu próprio comportamento violento é guiado pelo instinto maternal da personagem, ainda que ela seja uma concorrente ao título de pior mãe do mundo. Grave (2016), estreia da cineasta francesa Julia Ducournau como diretora e roteirista, apresenta uma veterinária vegetariana que desenvolve um gosto por canibalismo, e é mergulhada em dedos cortados e partes de corpo mastigadas – mas além do gore, existe uma história sobre irmandade e laços familiares.

Só que às vezes, a empatia pode sair pela culatra. Em Carrie, a Estranha (1976) de Brian De Palma, a interpretação pungente de Sissy Spacek nos permite sentir empatia com a personagem, que poderia de outra forma ser bizarra e terrível, e sua mãe (interpretada por Piper Laurie) é um dos maiores monstros da história do cinema. Mas onde muitos esperavam uma virada feminina no remake de Kimberly Peirce em 2013, motivações extras para as personagens tornaram as coisas diferentes. A mãe de Carrie recebe uma história de fundo e uma interpretação compreensiva de Julianne Moore, o que a torna muito menos “monstruosa”. E onde anteriormente Spacek atacava indiscriminadamente após o trauma da pegadinha do baile, Chloë Grace Moretz assassina seus bullies friamente enquanto poupa as pessoas que foram legais com ela, fazendo a personagem ser menos compreensiva, em uma versão “poderes telepáticos” de assassinato em massa em escolas. Simplificando, na versão de 2013, Carrie é realmente o monstro que sua mãe a acusava de ser.

Outros filmes, por sua vez, definitivamente se beneficiaram do “toque feminino”. The Woman – Nem Todo Monstro Vive na Selva (2011), dirigido por Lucky McKee, é essencialmente um filme sobre uma mulher “selvagem” sendo acorrentada, estuprada e torturada em um porão, e é tão nojento e ruim quanto esse resumo sugere, apesar da grande interpretação entregue por Pollyanna McIntosh no papel principal. Mas na sequência, Darlin’ (2019), é a própria McIntosh quem não apenas assume a personagem novamente, mas também escreve e dirige a história, adicionando humanidade, calor e o humor que tanto faltaram no primeiro filme. A filha da mulher selvagem é levada para um lar adotivo católico, onde a criança “selvagem” é ensinada a “viver em sociedade” em uma história que alterna amadurecimento com o tradicional estilo de perseguir e dilacerar, já que a mãe vai atrás da filha, eliminando uma grande quantidade de homens irritantes pelo caminho. É muito mais divertido do que o primeiro filme.

Se o cinema consiste em sobreviver e prosperar, ele deve apresentar o mundo por pontos de vista diferentes. E o “olhar feminino” é apenas uma das diferentes formas que as coisas podem ser vistas.

“Eu me esforcei num ponto para conscientemente objetificar os homens”, disse Eklöf, que para os dois principais papéis masculinos em Holiday, escolheu atores “atraentes de uma forma convencional”. “Eu peguei o papel de femme fatale vs. garota boazinha e inverti essa dinâmica”, afirmou ainda.

Enquanto isso, os fãs de terror estão esperando para ver qual será o efeito deste “olhar feminino” sobre o clássico Enraivecida na Fúria do Sexo (1977), de David Cronenberg. No filme, um acidente de moto faz com que a anti-heroína acabe com um implante fálico em sua axila, uma incontrolável sede de sangue, além de um vírus que transforma suas vítimas em espécies de zumbi. O remake das irmãs Soska será lançado em breve e mal podemos esperar para saber o rumo que esta história terá.


Texto traduzido e adaptado do The Guardian.

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