Recentes ataques ao evento Mulheres que Jogam, que propõe apenas participação feminina, atiçaram a ferida aberta que é o machismo dentro desses espaços nerds.

Olá desbravadoras de terrenos indomados,

Tem-se a ideia de que o RPG é um ambiente propício para a inclusão, já que é um lugar onde você encontra pessoas de todos os tipos e jeitos, que procuram se divertir assumindo características diferentes daquelas que se têm na vida real. Some a isto o fato de muitos rpgistas terem sido alvos de bullying e preconceito da parte de quem não joga e não entende RPG, e acabamos imaginando que este seja mesmo um ambiente seguro, já que estamos ali pelo mesmo motivo e podemos ser nós mesmos – sem medo – em meio a outras pessoas com gostos em comum.

Mas a realidade é, como sempre, muito diferente das expectativas e das aparências. Nestes recentes ataques, durante a divulgação do evento “Mulheres que Jogam” do grupo Board Game Girls, voltado para mulheres, houve muito descrédito e questionamentos violentos. Na página do Minas de Moria e também em outras páginas que divulgaram o link, muito se falou sobre RPG ser um espaço de inclusão e que a ação era discriminação e preconceito. Muitos desdenharam dizendo que ‘jogam há muitos anos e nunca viram machismo em mesa e que nunca viram mulheres serem proibidas de jogar’, questionavam sua necessidade, assim como afirmavam que aquilo era um retrocesso e completamente desnecessário. Mas não se engane. A comunidade sofre. As mulheres e pessoas LGBTQ+ dessa comunidade sofrem mais ainda. E, ouso dizer, é um dos nichos mais complicados de se estar inserida. Não acredita? Logo você entenderá o porquê.

Pedimos por histórias relacionadas a RPG de pessoas que sofreram algum tipo de discriminação, e foram mais de 27 relatos diversos (só em uma tarde) de meninas e mulheres, que vão desde terem interesse em jogar e não serem permitidas (ou convidadas) sob o argumento de que são “burras demais”, até casos mais graves de pessoas que tiveram seus personagens assediados e estuprados durante o jogo. Outras que receberam prova escrita antes de poder jogar com certos grupos; escritoras e tradutoras que tiveram os conhecimentos questionados em suas próprias obras e trabalhos; grupos de RPG que acobertam pessoas que perseguem minorias políticas, e etc. 

Obs: Para proteger todas as mulheres e pessoas não binárias que denunciaram e contaram suas histórias, omitimos todos os nomes. Contudo, mantivemos os casos, tanto para ilustrar a denúncia que estamos fazendo aqui, quanto para dar espaço para que falem por si.

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Por esforço (porque, não, não é por sorte) as mulheres têm conseguido mais espaço, e tem sido discutido sobre a inclusão de minorias políticas e sua importância em certos meios. Graças a pessoas esforçadas, estamos conseguindo respirar um pouquinho mais aliviadas. Mas só um pouquinho.

Quando você afirma que sua mesa tem várias mulheres, e que nunca teve problema de machismo em nenhuma mesa, você precisa rever algumas coisas e se perguntar outras, mas especialmente precisa ouvir, porque é fácil afirmar algo que não faz parte da sua realidade.

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Todos sentem-se completamente confortáveis com todos os rumos do seu jogo? Você coloca suas jogadoras em posições desconfortáveis por serem mulheres? Em eventos e encontros e outras ocasiões: você deixa essas mulheres confortáveis ou fica fazendo elogios, e fica cercando as moças como um urubu? Você é inclusivo ou intolerante se algum jogador ou personagem for LGBTQ?  Quando as mulheres querem começar a jogar, você as trata igual a um homem que quer começar a jogar? Você considera que essas mulheres podem ser mestras ou as força a assumirem o papel somente de jogadoras? Você está aberto ao debate e preparado para ouvir quando reclamam de machismo ou de algum tipo de destrato no ambiente de jogo do qual você faz parte?

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Essas posturas de mudanças são importantes, mas muitas dessas pessoas, mulheres e meninas, estão impactadas com a atmosfera hostil que encontraram ou, no mínimo, desconfortáveis em voltar para este ambiente. É nesse momento que surgem os eventos e meios apenas de mulheres. Não é uma atitude separatista, não é sobre homens.

O fato dos eventos serem permitidos a certo público e voltados somente para mulheres é justamente uma tentativa de colocá-las em um ambiente onde esta insegurança diminui, onde muitas vezes estas posturas não vão se repetir. É claro que isso não afirma que todas as mulheres são bacanas, mas diminuem as violências que acontecem pela condição de ser mulher, o que facilita a aproximação de muitas.

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Em segunda instância, espaços como o Mulheres que jogam, mostram a presença feminina e estabelecem laços entre as mulheres, o que é muito importante, pois não só se trata de representação, como também estimula amizades num mundo onde ouvimos sempre que uma mulher não pode confiar na outra e que este mundo de jogos não é nosso. Páginas de conteúdo de jogos como Casa Velha RPG, que compartilharam o evento receberam mensagens dizendo que eles deviam “se envergonhar de compartilhar isso” pois o RPG sempre promovia inclusão, ou mesmo disseram que “nunca viram nada acontecer com mulheres em jogo”

Porque tornar errado quando alguém se torna especial?
É interessante salientar que este tipo de movimentação é muito mais ampla do que apenas no RPG; é sobre permitir que  setores comumente vistos como “masculinos” pela construção social ganhem espaço para mostrar às mulheres que elas também podem fazer parte desses ambientes, para que se sintam mais à vontade se vendo como maioria e formando elos de amizade. Quantos grupos não têm apenas uma mulher? Quantas pessoas não assumem que uma garota só aparece no jogo como interesse/cônjuge/namorada de alguém.

Outras áreas recebem estas propostas também, como TI, programação, política, engenharia, games – ou seja, são movimentos de INCLUSÃO da mulher em espaços majoritariamente masculinos. Onde muitas de nós temos que nos esforçar muito pra entrar. 
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Dizer que esses espaços não são necessários e que este machismo não existe é apagar a história de mulheres e meninas que nem sempre têm bons contatos com o jogo. Claro que não são todas que passam por situações machistas, mas é preciso valorizar a história de tantas que não tiveram só bons momentos. Uma forma de fazer isso é, quando pessoas disserem que tem machismo ou outro tipo de preconceito nos grupos de RPG, apenas aceite. Sim, aceite. Repense sua mesa e chame a atenção se perceber atitudes desse tipo de seus jogadores. Muitas pequenas violências acontecem e passam despercebidas, só porque não houve reclamação não quer dizer que todos estavam felizes. Nós estamos lutando para que jogos sejam espaços inclusivos e que nenhuma pessoa se afaste do RPG por esses motivos.


Este texto foi escrito a duas mãos. Eu e a Jéssica Reinaldo juntamos forças para poder falar de um assunto delicado e que faz parte de nós e do nosso meio.

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