Confira uma análise da personagem.

The Handmaid’s Tale é uma história sobre mulheres em uma distopia estranhamente plausível, onde os homens assumiram o controle total. Embora as lutas das Aias obviamente ainda sejam o foco principal, Serena Joy, esposa do Comandante Fred Waterford, emergiu como um dos personagens mais fascinantes da segunda temporada: ela é alguém que detestamos por seu apoio a Gilead e consequentemente sua opressão às mulheres, mas ao mesmo tempo não temos como deixar de simpatizar enquanto vemos seus esforços tentando lidar com o monstro que ajudou a criar.

*** ALERTA DE SPOILER ***

Sua presença marcante na segunda parte da série não quer dizer que Serena Joy – interpretada pela maravilhosa e super talentosa atriz Yvonne Strahovski – não tenha sido uma parte importante da primeira temporada. Através de flashbacks, vimos como ela desempenhou um papel fundamental no planejamento (reparem bem no uso desta palavra) inicial de Gilead, ao mesmo tempo em que sua voz se tornava cada vez mais reprimida à medida que o regime misógino ganhava poder. Também vemos que ela escreveu um livro best-seller sobre suas crenças conservadoras, com o desagradável título de “A Woman’s Place” (esse também foi o nome de um episódio da primeira temporada, que já nos deu outra visão: o livro dela foi completamente jogado no lixo quando os EUA fez a transição para Gilead… onde, por lei, mulheres não podem ler ou escrever). Nós já ficamos bem familiarizadas com o temperamento perigoso de Serena Joy – não duvidamos de sua capacidade de atacar não só mental como fisicamente sua aia, Offred (a extremamente talentosa Elisabeth Moss) ou June Osborne (nome real antes de se tornar aia) – bem como de sua capacidade de ser cruel, por exemplo, quando ela ameaçou prejudicar a pequena Hannah, filha de June, como forma de manter sua aia na linha. Ou ainda pior, quando ela sugeriu que Fred estuprasse a aia ainda grávida para que o bebê nascesse mais rapidamente.

Serena Joy em sua casa, no episódio "A woman’s place". Photo: George Kraychyk (Hulu)
Serena Joy em sua casa, no episódio “A woman’s place”. Foto: George Kraychyk (Hulu)

A primeira temporada de The Handmaid’s Tale passou muito tempo levando Offred – e os espectadores da série junto com ela – até as regras e costumes gerais de Gilead. A segunda temporada começou agonizante (a cena das forcas que o diga) mas acabou dando um pouco mais de espaço para respirar, o que permitiu um pouco mais de tempo para aprofundar os personagens secundários da série. A tia Lydia (a também incrivelmente talentosa Ann Dowd) serviu como a adversária feminina mais proeminente da temporada para Offred – e não se engane, tia Lydia ainda é uma presença descontroladamente confusa que é de alguma forma ameaçadora e ao mesmo tempo reconfortante. Mas a segunda temporada realmente trouxe Serena Joy para o primeiro plano. Algumas das coisas que aprendemos sobre ela, novamente, são cortesia de flashbacks: sua notoriedade pré-Gilead como uma ativista conservadora é explorada em detalhes vívidos. Nós a vemos gravemente ferida por um atirador depois que um de seus discursos explodiu em um tumulto. Mas suas ações na atualidade da série também mostraram a pessoa complexa, conflituosa e cheia de nuances que ela realmente é.

Serena antes do guarda-roupa limitado. Photo: George Kraychyk (Hulu)
Serena antes do guarda-roupa limitado. Foto: George Kraychyk (Hulu)

A proeminência de Serena Joy na história faz sentido para a trama da segunda temporada, já que Offred está chegando ao fim de sua gravidez – um bebê que Serena há muito antevê com surpreendente ternura. Seu desejo por ter um filho é tão forte que, na primeira temporada, ela quebrou algumas das regras mais sagradas e fundamentais de Gilead, coagindo Offred a dormir com o motorista dos Waterford, Nick, sabendo que Fred é infértil. Seu desejo de proteger o bebê é impressionantemente feroz, e isso a joga na difícil posição em que ela se forçou: o fato de que ela é uma manipuladora que tem muito pouco para manipular, além de seu ambiente imediato. E até isso pode ser difícil, com uma aia que é tão obstinada e obviamente muito inteligente.

Quando Serena não consegue controlar uma situação, ela exerce a pequena influência que ela tem para conseguir o que quer – como cutucar o Comandante a procurar uma nova posição para Nick, que obviamente teve um interesse romântico com Offred. Quando isso falhou, ela abraçou totalmente a ideia do casamento arranjado de Nick, levando Offred para o evento de casamento em massa dos seguranças de Gilead com econoesposas, sabendo que isso iria devastá-la. E então, porque Serena adora uma boa reviravolta, ela faz um comentário para Offred sobre o quão bonito Nick parecia no palco. Na verdade, todos nós poderíamos dizer logo de cara que Nick parecia querer vomitar, que é a expressão mais comum para quem está em posição de perigo em Gilead. Mas foi um dos momentos de maior regozijo de Serena Joy.

Foto: George Kraychyk (Hulu)
Bitch, don’t kill my vibe. Foto: George Kraychyk (Hulu)

O relacionamento de Serena com Offred é muito tenso, mas – em um lugar como Gilead, onde o equilíbrio de poder é muito delicado e até mesmo interações sociais benignas tendem a ser preenchidas por ameaças veladas – seu relacionamento com outras mulheres também são bastante tensos. Tia Lydia, por exemplo. A aparente única mulher que tem algo que se assemelha a influência ou poder em Gilead, tem o mesmo objetivo que Serena: garantir que Offred tenha um bebê saudável. Mas tia Lydia sabe que a mansão dos Waterford é um ambiente de alto estresse; afinal de contas, a aia antes de Offred cometeu suicídio. Suas análises de Serena podem parecer pequenas, ou às vezes até úteis, como quando ela insiste que a “mãe grávida” pare de fumar. Mas elas feriram os pequenos fragmentos de orgulho que Serena se apega, e é possível até dizer que Serena teme as visitas de tia Lydia, que eram importantes tanto para controlar a atitude de Serena quanto para a saúde de Offred e do bebê. O rosto de Serena Joy quando ela vê tia Lydia usando um lápis, um privilégio especial para certas tias, é uma reação clássica da personagem. Nós não precisamos de uma locução ao estilo Offred para saber seus pensamentos mais internos; não há dúvidas sobre essa mistura requintada de nojo total e inveja furiosa. Nós vemos isso de novo e de novo todas as vezes, por exemplo, que ela encontra sua “amiga” Naomi, a esposa do comandante Warren, que para consternação de Serena, claramente parece abominar cada minuto da maternidade.

E, no entanto, apesar de todas as coisas terríveis que vimos Serena fazer, The Handmaid’s Tale tem o cuidado de mostrar que ela não é um monstro por completo. Os homens poderosos da série, especialmente o comandante Waterford, são em geral babacas irremediáveis. Mas Serena não é uma vilã meia boca. Ela tem algumas camadas complicadas. Embora ela, às vezes, assuma riscos que você não esperaria, todos fazem um certo sentido quando você pensa em suas prioridades. Ela falsifica documentos para que uma reconhecida neonatologista (uma mulher negra que foi forçada a virar Martha quando Gilead subiu ao poder) possa tentar ajudar o bebê seriamente doente de Naomi. Enquanto Fred está se recuperando dos ferimentos que sofreu no atentado terrorista, Serena explora suas habilidades de escrita há muito reprimidas e ajuda a manter seu trabalho funcionando, sabendo que seus rivais atacariam ao primeiro sinal de fraqueza. Então, ela fica realmente ousada e começa a esboçar novas políticas, com a ajuda de Offred, que costumava ser uma editora talentosa.

Escandalosamente, elas ousam escrever nesse episódio. Foto: George Kraychyk (Hulu)
Escandalosamente, elas ousam escrever nesse episódio. Foto: George Kraychyk (Hulu)

Enquanto Offred se maravilha com a novidade, as duas trabalham bem juntas. Em um universo paralelo, elas poderiam ter sido colegas de trabalho (nós também vimos em um episódio anterior, no tempo antes de Gilead, que ambas gostavam de ir no mesmo restaurante). Mas a nova parceria clandestina desmorona assim que Fred volta para casa, percebe o que está acontecendo, decide bater em sua esposa (na frente da aia) – é o tipo de punição que essa transgressão exige. Mesmo que Offred já antecipasse que toda coisa boa ou gentil que Serena fizesse seria rapidamente seguida por algo maldoso, ver Serena sendo violentada pelo Comandante torna uma situação já fodida em algo ainda pior de lidar. E a empatia que June sente por ela chega a ser incompreensível para alguns dos telespectadores.

No entanto, seria um desserviço à expressiva atuação de Strahovski dizer que a surra de Serena é a única coisa que torna essa personagem fundamentalmente desagradável em alguém realmente simpático de tempos em tempos. Serena é, sem dúvida, sádica à sua própria maneira – mas você tem a impressão de que, embora ela seja pró-Gilead e todas as coisas conservadoras repugnantes que defende, talvez não considerasse que seus próprios sentimentos pudessem trair seus rígidos ideais políticos e religiosos de vez em quando. Seu pequeno gosto da liberdade intelectual e seu horror pelo tratamento cada vez mais opressivo do marido (como Offred bem apontou para tia Lydia, e Serena certamente sabe, ele absolutamente vai ser um péssimo pai), fez com que o episódio em que os Waterfords viajaram para o Canadá fosse uma provocação inteligente.

Perfeitamente vestido para alguma jardinagem leve. Foto: George Kraychyk (Hulu)
Perfeitamente vestida para uma jardinagem leve. Foto: George Kraychyk (Hulu)

Lá, vimos Serena não apenas parecer sentir saudade da aparência da vida normal, como também a vimos absorvendo com dificuldade olhares e encaradas feias de pessoas que detestam o que ela representa (fora o choque de ter recebido uma programação de estadia com fotos em vez de palavras, porque né, NÃO PODE LER) – ela foi realmente tratada como uma aberração. Quando ela é abordada por um agente americano que oferece “traição e cocos”, como ela diz, você passa a desejar MUITO que ela pule no primeiro avião para o Havaí. Aí, ela não morde a isca e volta para casa com Fred, resoluta em sua ordem de que Offred deixará a mansão dos Waterford assim que ela der à luz. Serena também ainda está determinada a apoiar seu marido e criar seu bebê, que na verdade não é seu bebê, no mundo opressivo que ela ajudou a compor. A decepção com a personagem cresce constantemente. Mas apesar disso, também é perceptível que ela não quer negar o que passou a vida inteira (sendo doutrinada) defendendo, pois se desapegar de seus valores ao perceber que eles não eram o que ela imaginava seria um baque fortíssimo em suas convicções. Ela tem perfeita noção de que ajudou a criar um monstro, mas dentro do conforto de seus privilégios parece ser difícil aceitar que ele nunca deveria ter existido. Então ela decide continuar no erro, uma vez que já havia ido longe demais para voltar atrás.

Pouco depois, vimos ela dobrar esse compromisso com o erro, de uma maneira particularmente hedionda. Quando Offred entrou em trabalho de parto, o alívio de Serena de que todo aquele drama com a aia terminaria de vez quase se igualou à sua animação pela chegada iminente do bebê. Mas quando isso se transformou em um falso trabalho de parto – após Serena já estar em seu traje de parto e Fred já ter distribuído charutos para seus companheiros – a fúria e desapontamento de Serena fizeram dela uma participante voluntária em uma encenação pouco ortodoxa da “cerimônia” – grosseiramente prendendo Offred na cama para que Fred pudesse estuprá-la mais uma vez. Aparentemente para “encorajar” e “ajudar” a aia grávida a entrar em trabalho de parto. Mas, na verdade, era tudo sobre poder, como muitas outras coisas em Gilead – além de ser um vívido lembrete de como a alma de Serena, na verdade, está corrompida.

Mesmo após ter seu dedo cortado tentando defender o direito de que as crianças deveriam ser ensinadas a ler, ou mesmo quando ela abre mão do tão desejado bebê para que June o leve embora de Gilead, é difícil perdoá-la. O ódio pela personagem é compreensível.

No entanto, é curioso notar o fato de que o episódio do Canadá nos fez de algum modo torcer pela odiosa Serena Joy e isso é uma espécie de milagre – explicável talvez pelo fato de que nosso ódio de Gilead ficou tão grande que qualquer sinal de rebeldia de alguém que poderia ajudar a destruir o sistema é alguém nós queremos encorajar.

Também é importante perceber que entregar Nichole para June foi a verdadeira amostra do colapso da confiança que Serena tinha em Gilead, assim como do seu próprio caráter. Ela é desafiada de maneira tal que realmente se quebra, e ela experimenta coisas realmente horríveis que a fazem pensar diferente sobre a maternidade e o que significa criar um filho em Gilead, para então finalmente fazer o maior sacrifício que jamais fez em sua vida. É a prova de que ela percebeu seus erros e está colocando a vida do bebê na frente de suas necessidades egoístas.

June é a mãe biológica de Nichole e Serena é sua mãe “adotiva” – June embraça isso quando deixa de chamar o bebê de Holly e diz a Emily que a chamasse de Nichole.

Ambas são poderosas, inteligentes e teimosas a ponto de serem rebeldes. Serena sabia que isso faria com que Nichole fosse alguém forte e inteligente, com uma boca grande e atrevida – e que isso a mataria.

Foto: George Kraychyk (Hulu)
Foto: George Kraychyk (Hulu)

A relação entre ela e June está sempre se aproximando e se desfazendo, se juntando e se separando. E está se desintegrando de formas horríveis – tão violentas que você nunca acharia que elas poderiam voltar a se juntar novamente. Mas, de alguma forma, essas duas mulheres estão tão entrelaçadas que é impossível para elas se libertarem uma da outra. E é interessante notar como June, que achava Serena uma “goddamn motherfucking monster” e uma “evil bitch” passou a ter outra visão sobre ela, apesar de tudo. Então por que nós não deveríamos fazer o mesmo também?


Texto traduzido e adaptado de: io9 | Buzzfeed.

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