Fofo, cheio de aventuras, reviravoltas e muita informação super útil!

Com uma doença se espalhando por todo o mundo, é difícil evitar os comentários constantes sobre a saúde das pessoas. E boa parte da mídia e debate médico no mundo parece tratar os corpos das pessoas como abstrações metonímicas, representando doentes não identificados ou pessoas mortas. Outras pessoas tratam os corpos como realidades assustadoras, hospedeiros para um inimigo invisível e por vezes fatal. Conversas públicas sobre corpos se tornaram qualitativas, sobre alto ou baixo risco, força e vitalidade, como se estivéssemos em uma série sobre o fim do mundo criada por Charles Darwin. Mesmo as pessoas tratadas como “de baixo risco” devem se distanciar socialmente, o que faz o conceito de corpo assumir o papel de uma “casa mal-assombrada”: ou você está no momento de suspense antes do ataque do poltergeist ou já foi possuído.

Talvez seja a hora de imaginarmos os nossos corpos de uma maneira diferente durante esse desastre. Talvez possamos usar todo um novo vocabulário sobre saúde e bem-estar. E é exatamente isso o que o anime Cells at Work! (em japonês, Hataraku Saibou) faz. E por isso, talvez ele seja um bom remédio para uma era em que o coronavírus tornou nossos corpos em algo tão assustador e imprevisível.

Nessa série de 2018, atualmente disponível tanto na Netflix quanto na Crunchyroll, uma Célula Vermelha desajeitada e sem senso de direção tenta fazer o seu trabalho de distribuir oxigênio para as outras células do corpo enquanto evita as constantes catástrofes em forma de germes invasores, bactérias e vírus. E ela é auxiliada por uma Célula Branca militar, que tem um bom coração, mas pouca capacidade social (sua frase preferida é “Morra, germe!”).

Várias outras células também participam das histórias, algumas estranhas e outras mais curiosas, como o misterioso Basófilo, ou as empolgadas Macrófagos, que se vestem de maid e usam armas gigantes.

A série, adaptada do mangá de Akane Shimizu, segue um padrão de “monstro da semana”. Mesmo a sua previsibilidade é empolgante e saudável. A série não é sobre os vilões, apesar de ser extremamente divertido ver os massivos alergênicos de pólen ou os estafilococos em forma de “cacho de uva” causando caos por onde passam. Em vez disso, a série é sobre a resistência do corpo e uma comunidade de indivíduos (células e etc)  trabalhando em busca do bem comum.

A cada vez que uma célula é apresentada – por exemplo: as incrivelmente adoráveis Plaquetas ou a cerebral e apaixonada por chá Célula T Auxiliar – a série leva algum tempo explicando suas funções vitais e sua relação com as outras células do corpo, assim como o cenário mais amplo do corpo. Células imaturas, ou células ligadas a uma função específica normalmente são apresentadas com suas inseguranças. Mas elas também recebem uma história de fundo e uma chance para brilharem.

Um dos melhores episódios da série apresenta uma gripe como um vírus que invade no estilo de um ataque de zumbis, enquanto uma jovem e assustada célula de defesa tenta superar seu medo para se tornar um dos lutadores de elite de defesa do corpo. É fácil e satisfatório imaginar COVID-19 neste episódio, como um vírus invasor que se multiplica rapidamente e ataca, e as células do corpo se unindo para derrotá-lo.

Em outro episódio, uma célula cancerosa é apresentada em uma variação do vilão unidimensional. Ele é escrito de forma a conquistar a sua empatia, como uma célula mutante que deseja destruir o corpo porque desde que nasceu, o corpo tem tentado destruí-lo. Deixando de lado a dissonância cognitiva criada pelo episódio, ao pedir que o público simpatize como uma doença tão comum e debilitante como essa, a série consegue de uma forma emocionante demonstrar como o antagonista representa a antítese de tudo que ela constrói até ali. Claro que uma célula cancerosa se sente como uma vítima transformada em vilão – ela está não-intencionalmente trabalhando ao contrário do corpo, que funciona como uma máquina muito bem ajustada, produzindo nutrientes, mantendo a homeostase e valentemente se protegendo das ameaças.

O corpo é também político em quase todos os sentidos enquanto aparece. Nesse tempo de pandemia, o corpo tem sido politizado como um símbolo da falta de políticas de saúde. Da violenta indiferença para com as comunidades marginalizadas e da forma como as minorias são tratadas. Quando corpos infectados se tornam uma forma de demonstrar que o “grande corpo” do país está contaminado, em Cells at Work! podemos perceber que um corpo também é como um grande país, que só pode funcionar com um forte senso de união e comunidade.

Como um professor de ensino médio em uma série de drama clichê diria: não existe contribuição pequena. E a célula vermelha comprova isso – ela é uma parte completamente ignorável e compreende um infinitésimo do corpo, e ainda assim se dedica durante toda a temporada a melhorar em seu trabalho. Mesmo durante o apocalíptico e dramático episódio final em duas partes, em que o corpo está prestes a morrer, ela valentemente continua a fazer tudo que pode enquanto tenta se mover.

E é inevitável a comparação entre Cells at Work!, e o filme (e série spin-off) Osmosis Jones, dos irmãos Farrelly, lançado em 2001, uma vez que ambos transformaram as funções básicas do corpo em heróis simpáticos e antropomórficos. Uma diferença essencial, além do tom e da estética, é a forma como Osmosis Jones olha para fora do corpo em busca de contexto. Bill Murray interpreta o corpo que as células heroicas estão tentando defender, e o filme utiliza um humor nojento envolvendo o ator para arrancar risadas. Já em Cells at Work!, nós não vemos o corpo se não pelos incidentes sofridos por ele – intoxicação alimentar, gripe, insolação, choque hemorrágico – e isso levanta muitas perguntas. De quem é esse corpo? Qual a sua idade? Seu histórico? Por que essa pessoa pega tantas doenças? Como ela está se comportando do lado de fora?

Para a série, esses detalhes são irrelevantes. Podem ser inclusive uma distração. O que importa é a batalha interna, e esse sentimento de que as células estão alegremente cooperando para manter o corpo funcionando o melhor possível. No mundo real, estamos em guerra com uma doença que nos força a resistir às nossas vontades sociais, nos isolando enquanto médicos e profissionais de saúde tentam fazer o que podem com recursos limitados e falta de apoio.

O conceito de Cells at Work! que os nossos corpos contém todo um exército de organismos trabalhadores e bem-intencionados que trabalham em busca da nossa sobrevivência é precioso e empolgante. Afinal, o corpo não pode ser associado apenas com desastres e coisas ruins. Nós já temos que lidar com muita coisa no mundo exterior.

E mesmo em momentos difíceis, em que nossos corpos estão lutando contra uma maré como essas, eles ainda são cheios de esperanças.


Fonte: Polygon

Leia mais sobre Cells at Work! aqui no site.

Compartilhe: