Precisamos conversar sobre limites enquanto fãs.

“Fandom” – a comunidade participativa que surge de algum tipo de mídia – se tornou algo muito presente dentro da cultura pop. Não se trata apenas de ser fã de alguma coisa, mas ser fã ao produzir trabalhos criativos, coletar conhecimento, fazer cosplay, participar de convenções e fazer parte da sempre crescente comunidade vocal online. Alguns fandoms inclusive tem sido importantes para pessoas que buscam comunidades difíceis de encontrar no seu cotidiano, empoderando-as ao se tornarem parte de algo que significa muito para elas, mas alguns deles têm apenas empoderado os piores aspectos da cultura de seus fãs.

As relações entre fandom e criadores de mídia podem causar uma perigosa espiral descendente. O mau comportamento de um permite o mau comportamento do outro até que todos os outros apenas se afastem e deixem o fandom morrer. E tudo isso recebe uma proporção muito maior graças à capacidade que a internet tem de amplificar opiniões e direcioná-las de forma bastante específica. Então apesar de isso permitir que os fãs apontem falhas que acreditam que devem ser corrigidas, isso também permite que uma grande quantidade de conteúdo tóxico possa ser direcionado às pessoas que trabalham na criação de mídia. As discussões sobre o trailer de Sonic, por exemplo, demonstram como essas duas possibilidades funcionam.

Dois eventos este ano também demonstram essa dicotomia muito bem: a indicação de Archive of Our Own (AO3, ou em tradução livre, Nosso Próprio Arquivo) ao prêmio Hugo e a mudança da política de análises do Rotten Tomatoes.

Archive of Our Own conseguiu alcançar algo incrível, tendo nascido do fandom. A plataforma foi construída sem fins lucrativos para que os escritores de fanfics não precisassem se preocupar em perder sua plataforma por questões de não-rentabilidade. Uma série de exclusões no Livejournal e experiências anteriores com as regras do Fanfiction.net com relação a conteúdos, incentivaram a criação deste arquivo. Com isso, os criadores poderiam ter acesso a um site para publicação de seu material sem se preocupar com pressões de patrocinadores e risco de alegações de violação autoral.

Desde o início do ano, o site Archive of Our Own – conhecido por AO3 – abriga 4,8 milhões de trabalhos de mais de 32.500 fandoms diferentes. Ou seja, quase cinco milhões de histórias, gravações em áudio e artes, baseados em livros, quadrinhos, jogos, séries de televisão, filmes e basicamente qualquer coisa que você possa imaginar. O projeto foi iniciado pela organização sem fins lucrativos “Transformative Works”, conhecida por aparecer em painéis defendendo a proteção legal ao conteúdo criado por fãs, especialmente com relação a direitos autorais. O fandom é onde você encontra os artigos sobre representação, cosplays, e não podemos esquecer, os memes. A nomeação do AO3 para o Hugo é um reconhecimento do tamanho da contribuição oferecida pelos fãs. É o lado bom do fandom sendo reconhecido.

Ainda neste ano, em resposta aos trolls que resolveram lançar avaliações negativas em massa contra o filme da Capitã Marvel – uma tentativa fracassada de reduzir o interesse do público antes do lançamento – o site Rotten Tomatoes decidiu desativar os comentários nos filmes antes de seu lançamento. A medida não foi suficiente e, posteriormente, o site decidiu também restringir a pontuação das análises não-profissionais – conhecida como opinião do público – apenas para aqueles que comprovassem que haviam comprado um ingresso para o filme. Essas mudanças adotadas pelo site conseguiram quebrar uma das principais táticas dos trolls, demonstrando também o quão nojento e arrogante o comportamento deles pode ser.

Esse tipo de trollagem e assédio envolvendo filmes como Capitã Marvel, assim como as brigas entre fãs, especialmente entre os que se acham “mais fãs” do que os outros são o que transformam um fandom em algo tóxico.

Tóxico é realmente o termo correto para descrever “fãs” que se “dedicam” tanto a um fandom em particular, que chegam ao ponto de “tentar salvar” ou “protegê-lo” estragando a experiência para o resto do público.

Isso não é um problema novo, certamente. Drama existe dentro de qualquer comunidade, especialmente aquelas em que paixões estão envolvidas. No passado distante dos fandoms – na verdade, coisa de 15 anos atrás – uma comunidade foi desenvolvida apenas para encontrar esse tipo de colapso. A Fandom Wank (literalmente traduzida como “Punheta do Fandom”) registrou algumas brigas realmente complicadas dentro dos fandoms.

Hoje, porém, o fandom é algo impossível de separar das pessoas que fazem o trabalho primário. O que costumava ficar confinado em locais como a Fandom Wank e o Livejournal, hoje afeta o que todos podem ver nas telinhas e telonas. Twitter, Instagram e outras plataformas sociais criaram um atalho para que o fandom tóxico possa atacar as pessoas que trabalham com as coisas que eles declaram ser fãs.

O drama inunda as redes sociais após o lançamento de um novo trailer ou episódio. Começa com gifs dos grandes momentos, se torna uma dissecação de capturas de tela e chega até as críticas – muitas legítimas, outras não. E as pessoas começam a gritar umas com as outras, com publicações seguidas de publicações, tweets seguidos de tweets. Tudo isso ajuda a vender o produto, especialmente quando o produto se torna uma tendência. A indústria tem se adaptado a isso, tornando os trailers algo especificamente desenvolvido para esse tipo de análise, incluindo segredos para serem encontrados pelos fãs e cenas que nunca chegarão ao produto final. É por isso que você pode encontrar hashtags oficiais no twitter com emotes personalizados. Tudo isso tem como objetivo fazer o fandom se tornar parte da marca oficial.

E o fandom chega a ser assunto a ser coberto pela imprensa. Pelos grandes meios de imprensa. Ele está presente inclusive nas negociações, quando os executivos de Hollywood sofrem desproporcionais pressões externas.

Em certas franquias, os estúdios e redes decidiram atender diretamente ao fandom. Em alguns casos, não é apenas atender, mas contar com a participação dele. A preexistência de um fandom é a garantia de público que comprará ingressos, discos, mídias e demais produtos. Além disso, os diversos criadores de filmes e adaptações de materiais antigos são fãs daquele material e estão dispostos a ser sensíveis às críticas desse grupo. Escritores e cineastas estão nas redes sociais com o objetivo de se tornarem “acessíveis” aos fãs. Um sentimento que é amplificado quando eles fazem coisas como transmissões ao vivo, respondem perguntas ou defendem decisões controversas em suas redes sociais. Nada disso é essencialmente ruim, mas a forma como alguns fãs encontraram de abusar essa acessibilidade definitivamente pode ser.

Dar aos fãs a sensação de que eles são os donos de alguma coisa, literalmente causa essa impressão neles de poder exigir algo e que aquela obra deve obrigatoriamente se adequar às suas opiniões.

Esse foi o problema enfrentado pelo Rotten Tomatoes. Kelly Marie Tran foi expulsa do Instagram pelo bullying porque alguns supostos fãs de Star Wars não gostaram de sua personagem. Isso é o que podemos ver ao afirmarmos qualquer coisa positiva sobre Os Últimos Jedi ou qualquer coisa negativa sobre os filmes da DC na era de Zack Snyder.

Existe um ponto em que um fandom tóxico – ou pelo menos um que possua uma minoria muito barulhenta e tóxica – acaba estragando completamente aquilo que lhe deu origem. Novamente a expressão tóxica é perfeita porque é algo que mata o próprio solo de onde brotou.

Muitas pessoas afirmam que Rick e Morty é uma série que não conseguem gostar ou admitir que gostam, e não por causa dos problemas com os criadores e sim por causa dos fãs. Star Wars é um monstro da cultura pop e ao mesmo tempo fonte inesgotável de chorume. E um certo segmento de fãs da DC tornou realmente um sacrifício você gostar (ou desgostar) de algum filme da franquia.

As pessoas abandonam o fandom o tempo todo. Escrever sobre abandonar o fandom é praticamente um gênero literário. Mas se desligar não significa que ele deixará de afetar a forma como você aproveita aquele trabalho. Fandom, com todos os seus extremos, continua sendo a maioria das pessoas que se consideram fãs de algo.

Pensem na bilheteria de Star Wars. E então pensem na quantidade massiva de pessoas contribuindo com a Wookieepedia, escrevendo fanfics, criando fanarts, indo aos festivais de Star Wars ou mesmo atacando os atores dos filmes na internet. Tudo isso é apenas uma parte daquele total de pessoas que vão aos cinemas para assistir aos filmes. A verdade é que é mais do que possível gostar de algo sem fazer parte do fandom, ou mesmo conhecê-lo, já que para isso você deverá dedicar horas do seu dia online.

Os estúdios e criadores veem e atendem a esses fãs o tempo todo, de formas boas e ruins. Estúdios e criadores utilizam seus fãs como escudos para se defender de críticas e mesmo de outros fãs, utilizando as mensagens positivas recebidas como estratégia de marketing. E eles alegam se preocupar com o que os “fãs” querem como base para agirem de forma reacionária, para justificar decisões ruins e para inflamar a atitude defensiva destes mesmos fãs.

Apesar disso, ainda existe uma noção cultural do que seria um fã de Star Wars, um resquício de uma era em que os filmes eram imensamente populares, mas seus fãs ainda eram caracterizados como moradores de porões que não possuíam vida social. E ainda assim, ainda que A Ascensão de Skywalker dê um passo atrás em todas as partes criticadas de Os Últimos Jedi, ainda haverá um grupo de fãs que comemorará sua “vitória”, que dirá que é responsável por essa decisão. Isso fará com que eles se sintam mais encorajados a agir assim. E novamente, isso seria algo que faria ser constrangedor se declarar abertamente como um fã de Star Wars.

Existe um profundo debate sobre o que deve ser feito com a arte quando o artista se comporta de forma inadequada. O vínculo entre um artista e sua arte é claro, especialmente durante a sua vida. Ele se beneficia direta e indiretamente com o rendimento de seu trabalho – e podem utilizar parte deste dinheiro, ou caso o projeto seja um sucesso, terão novas oportunidades a partir deste sucesso.

Existe também uma clara conexão entre um criador tóxico e seu fandom tóxico. Artistas que se comportam de forma inaceitável – cometendo inclusive crimes – ainda podem alcançar o sucesso, desde que um fandom raivoso esteja ao seu lado.

Chris Brown, Logan Paul e PewDiePie são excelentes exemplos.

Quando isso acontece de forma diferente – quando o fandom é tóxico, mas a obra não é – fica um pouco mais difícil reagir.

Nós estabelecemos uma “moldura” sobre como devemos interpretar a arte, frente a frente com o artista. Você pode escolher dar ênfase à intenção do autor, ou seja, tentar entender o que o artista queria dizer ou aplicar as próprias palavras dele sobre o que significa o trabalho. Você também pode adotar uma posição de “morte ao autor”, separando completamente o trabalho de quem o criou. Ou você pode adotar um meio termo entre os dois. Quando se trata da interpretação do trabalho, o fandom também pode ter uma influência desproporcional.

Freud não havia nascido quando Hamlet foi escrito, mas graças ao filme de Kenneth Branagh, muita gente acreditava que a mensagem do filme era algo do tipo “Hamlet queria transar com a própria mãe”, e não que isso era apenas uma das interpretações possíveis. O fandom de James Bond sempre defendeu que “James Bond” era apenas um codinome como “Q” ou “M”, como uma forma de explicar o porquê de tantos atores diferentes terem interpretado o personagem, com tantas contradições entre os filmes. Ao menos até 007 – Operação Skyfall surgir. E já podemos nos preparar para o chorume com a indicação de Lashana Lynch como a mais nova 007.

Então o que devemos fazer? Assim como os autores, nós sabemos lidar com os extremos. Ninguém culpa seriamente “O Apanhador no Campo de Centeio” pelo número de assassinos que parecem gostar da obra. Ao mesmo tempo, o fandom tóxico exige, incessantemente, a versão de Snyder de Liga da Justiça, e o próprio diretor aceita essa adulação, atravessando essa barreira entre artista e fandom.

E isso se torna ainda pior quando a defesa levantada pelo criador é que “gostar da sua interpretação do trabalho” é o que torna você um “verdadeiro fã”. Isso cria um “teste de pureza” do fandom, em que “gostar do que determinado artista fez” te dá uma noção de superioridade sobre as pessoas “normais” ou que não gostaram de determinada coisa. A partir daí, os fãs que estão do lado do estúdio acabam se tornando os “verdadeiros fãs”. Mesmo situações positivas como as movimentações de um fandom para tentar salvar uma série ou financiar um filme, acabam subitamente se tornam uma forma de os fãs declararem propriedade sobre a arte.

A resposta não é a “morte do fandom”.

Não é uma coisa ruim que uma dedicada base de fãs possa manter uma série viva; tampouco é uma coisa ruim que um fandom possa interagir com os criadores para demonstrar descontentamento.

A série The 100 matou a personagem Lexa após a série passar um bom tempo construindo o seu relacionamento com Clarke, o que chocou muita gente como mais um exemplo do tropo “enterre seus gays”. Ou seja, personagens LGBT que só existem para morrer, como forma de fazer a história avançar ou causar impacto emocional. E o escritor deste episódio respondeu à onda de críticas de forma menos defensiva do que pensativa.

O Fandom – que é muito mais diverso do que Hollywood em geral – tem sim muito conhecimento a oferecer. Ele consegue ver coisas claramente ruins, como whitewashing, que os executivos brancos de Hollywood muitas vezes parecem não conseguir.

Já passou da hora de reconhecer que um fandom tóxico pode não apenas estragar as coisas para as pessoas no fandom, mas também a coisa em si. É hora de parar de atender a essa minoria barulhenta e parar de usar a frase “é o que os fãs querem” para justificar decisões ruins.

Afinal de contas, os estúdios e redes são aqueles que tem mais poder nesse relacionamento, e cabe a eles a responsabilidade. Eles estão investindo no fandom e o deixando decidir o que fazer e vender aos investidores como um “público já construído” para o projeto.

Eles estão o utilizando o marketing para esconder coisas que a maioria do público já rejeitou. Eles estão usando as redes sociais e o fanservice para enlouquecer os fãs, então eles têm de se posicionar contra o comportamento ruim. Se o fandom vai se tornar a marca, eles têm uma responsabilidade de não ceder às piores exigências de uma minoria tóxica. Os estúdios e redes de televisão têm que aprender a diferença entre críticas reais e reclamações infundadas.

Eles têm de realmente entender como funcionam esses fandoms, em vez de simplesmente alimentá-los, deixando que os elementos tóxicos ditem as suas ações. A única coisa boa que surgiu do desastre de James Gunn, por exemplo, foi a esperança que alguma lição tenha sido aprendida nas cabines superiores.


Texto traduzido e adaptado da Polygon.

Capa: Chelsea Beck (Gizmodo)

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