Um momento de reflexão sobre a representatividade negras em HQs, games, filmes etc.

Junho foi um mês turbulento, a morte de George Floyd desencadeou uma série de protestos nos Estados Unidos e em vários países. Os protestos fizeram com que pessoas que não eram familiarizadas com o movimento, celebridades e até grandes empresas manifestaram apoio e suporte ao “Black Lives Matter”. É importante ressaltar que o “Movimento Vidas Negras Importamdeve (e precisa) impactar a indústria do entretenimento e da cultura nerd.

Já vimos que o audiovisual tem um papel importante para apoiar o movimento, uma vez que são “os meios mais influentes e amplos na propagação de ideologias, responsáveis por ditar diversos tipos de comportamentos sociais”. Acredito que não só o cinema e a televisão, mas qualquer mídia, empresa e até pessoas são geradoras de opinião hoje em dia.

O Garotas Geeks reforça a importância de representatividade e ocupação de mulheres em games, HQs, cinemas, etc. Sabemos que a luta vai além do gênero, é preciso lutar pela inclusão de pessoas negras, asiáticas, LGBTI+ e até pessoas com deficiência (PCD) para além de enriquecer conhecimento mas gerar novas experiências e narrativas.

Para falar sobre isso, entrevistei pessoas relevantes no cenário que atuam para mostrar a importância de como Vidas Negras Importam é necessário para a cultura pop.

Luiz Gustavo Queiroga – Jornalista e Repórter de eSport

GG: Quais produtos nerds (games, HQs, animes, etc) te influenciaram a ser quem você é hoje como uma pessoa geek?

Luiz Queiroga: Nesse aspecto, de olhar pra quem eu sou hoje, vejo que desenhos em geral e HQs foram os principais responsáveis por uma interiorização – mesmo que talvez ainda não de forma consciente, mas de algo plantado, sabe? Dito isso, falo primeiro de Os Cavaleiros do Zodíaco.

É o meu anime favorito, revejo até hoje e aprendo demais sempre que assisto novamente algum episódio. Toda a mensagem sobre combater o mal, que é imutável, ser resiliente, não desistir, ser leal aos seus valores e aos seus próximos, querer o diálogo antes de partir para qualquer atitude mais séria.

“A resistência se faz necessária mesmo quando eles parecem estar ganhando território.”

E cito duas obras de HQ: Turma da Mônica, que era leitura todo dia desde pequenino; e também Asterix. Eu olho até mesmo para o contexto atual político-social em que vivemos e me atento para a história toda da ‘irredutível aldeia gaulesa’. A resistência se faz necessária mesmo quando eles parecem estar ganhando território.

GG: Você sente que algumas produções repercutem estereótipos negativos do povo negro? Como deve-se combater isso?

LQ: Infelizmente sim. Ainda hoje temos estereótipos bizarros e que reforçam um preconceito contra a pessoa negra absurdo. E em vários tipos de linguagem. Curioso o processo todo em termos de produções: você simplesmente não tinha pessoas negras nas obras. Pegue Star Wars: Uma Nova Esperança e eu duvido que você me aponte um personagem negro.

A reunião dentro da base rebelde antes da batalha final me deixa extremamente incomodado e é o ponto mais nítido sobre minha crítica: o exército da Aliança Rebelde, que representava a esperança e a diversidade, não tinha nem uma pessoa negra. Apenas um padrão estava ali estabelecido e estamos falando de um filme de 77.

Acho que o pessoal percebeu que algo estava de errado, não à toa temos um protagonista negro agora na última trilogia – rodeado por uma diversidade, mas que ainda causa incômodo e gera ódio, infelizmente, como o racismo que a Kelly Marie Tran sofreu e teve validado quando a Lucasfilm apenas deu voz aos ataques e tirou o protagonismo dela no filme mais recente. Mas então foi isso: simplesmente não havia negros no cinema; depois veio uma representatividade problemática baseada em estereótipos criados pelo homem branco. Então negro muitas vezes era um traficante, um bandido… Ou apenas um recurso narrativo para dar sustento ao protagonista, que sempre era branco: é o cara malandro e gente fina, que serve de ponte para resolver os problemas do mocinho. Ninguém pergunta se ele está bem.

“É preciso construir um ambiente que realmente sustente a inclusão de pessoas negras. Então ter diretores, produtores, roteiristas e operadores é fundamental!”

Para se combater isso, é preciso acabar com o racismo institucional presente na indústria do cinema. É algo que provém do racismo estrutural, ou seja, a forma como a sociedade se estruturou numa lógica racista, que beneficia um padrão em detrimento de vários outros diversos. Não adianta colocar um ator negro lá apenas (isso quando o público não faz campanha contra, só ver as reações com os últimos nomes especulados para ser James Bond).

É preciso construir um ambiente que realmente sustente a inclusão de pessoas negras. Então ter diretores, produtores, roteiristas e operadores é fundamental! Sabemos que só quem vive determinada realidade pode representá-la com maior propriedade. Enquanto Hollywood só tiver gente branca em evidência nos cargos mais importantes, isso não vai mudar.

Reconhecimento: Seu trabalho em falar da luta antirracista no meio dos games e eSport chamou a atenção do rapper Emicida

GG: Quais são as barreiras que limitam a produção negra no seu setor?

LQ: Racismo. A lógica é simples: eu trabalho no meio de esportes eletrônicos. Ou seja, videogames e computadores são os principais instrumentos de trabalho. Para você comprar um console ou então um PC gamer é preciso investir muita grana, correto? Só quem tem poder aquisitivo consegue adquirir. E olha que ainda tem mais coisas, como conexão de internet boa, os periféricos, aquela cadeira gamer pra você não entortar a coluna. O setup completo. Se estamos falando disso tudo, então na verdade estamos falando sobre acessibilidade, não? Estamos falando então sobre acessibilidade e oportunidades. Então, pra quem refuta minha resposta, diz que é sobre desigualdade social – e não sobre racismo. Mas aí que está: no Brasil, falar de racismo é falar de desigualdade social. Ter consciência de classe é ter consciência de raça. São duas coisas interligadas.

“Como eu vou ver mais negros nos esportes eletrônicos se é uma bolha privilegiada e que reforça a exclusão social? A realidade do brasileiro joga totalmente contra.”

O racismo estrutural está interligado historicamente com a desigualdade social. Nosso país foi construído na lógica colonialista.

Então é isso, falando como uma pessoa negra: como eu vou ver mais negros nos esportes eletrônicos se é uma bolha privilegiada e que reforça a exclusão social? A realidade do brasileiro joga totalmente contra.

Luiz Queiroga. Divulgação/BBL

GG: Como se sente, como pessoa negra, por ocupar um espaço que tem pouca representatividade e como é o peso ao se tornar uma referência?

L.Q: Sinceramente? Cansado hahaha É uma luta diária e árdua, que desgasta e muitas vezes até desestimula. Tem que ter saúde mental boa pra lidar com o racismo. Terapia também. E, até direciono: eu não saberia lidar com tanta injustiça se não tivesse contato com uma rede negra de apoio. De uns tempos para cá, conheci virtualmente pretos e pretas maravilhosos. Gente incrível demais. E de tudo que é área possível: ciências sociais ou então políticas, pesquisadores, fotógrafos, produtores, advogados, pedagogos. Sim, eles existem. Procura na internet que é fácil, te garanto.

Assim como muitas perguntas sobre racismo que muitos de vocês preferem perguntar pra gente – como se não tivéssemos mais coisas pra fazer na vida a não ser responder só as mesmas perguntas de pessoas brancas. Já falei que estou cansado? Pois é.

Somos humanos e também temos sentimentos, uma vida haha Mas então, voltando à pergunta: para eu encarar o meio de esportes eletrônicos, foi necessário eu estar em contato com pessoas pretas fora desse meio. Até mesmo porque: a bolha é branca em sua maioria. E esse é um dos maiores problemas do negro privilegiado que desde pequeno nasceu em uma bolha branca. Meu caso, inclusive, por ser classe média e estudar até mesmo em colégio de elite: como eu vou me sentir negro se a bolha é branca? Cresci como se fosse uma pessoa branca, me achando branco. Mesmo quando faziam ‘brincadeiras’ racistas comigo, eu não entendia como racismo. É importante eu falar tudo isso porque sua pergunta é exatamente sobre como é se sentir, enquanto pessoa negra, ocupando um espaço de pouca representatividade. Eu preciso ter o sentimento de ser negro. Sentimento e consciência. Mas o racismo estrutural no país em que vivemos é tão cruel e velado que ele não só acarreta em problemas sociais, como já falei em respostas antes sobre a ligação com desigualdade social, mas também afeta diretamente nossa individualidade. O racismo acaba com a nossa subjetividade. Perdemos quem somos. Afeta nossa autoestima de diversas maneiras. Por isso minha consciência enquanto pessoa negra demorou a ser religada com quem eu sou. Não basta você ver a cor da pele no espelho, você precisa sentir.

“É difícil ser um negro com consciência de raça em uma bolha como a dos esports porque o racismo é latente.”

Dito tudo isso, tentarei ser mais objetivo na resposta: é difícil ser um negro com consciência de raça em uma bolha como a dos esports porque o racismo é latente. Está em todos os lugares possíveis. E desconstruir isso não é fácil. As pessoas não me ouvem, apenas retrucam. Já sofri com racismo enquanto eu desempenhava meu trabalho. Isso é desumano. Ter meu cabelo, que é black power e foi, inclusive, meu primeiro passo para me entender enquanto negro, invadido por uma caneta porque algum branquelo achou engraçado é doído demais. E tudo isso enquanto eu fazia o meu trabalho. Então é uma missão difícil. E sobre ser referência: é de uma responsabilidade tremenda. Meu trabalho vem estado em maior evidência nos últimos tempos até mesmo pelas questões raciais que eu sempre proponho, seja no Twitter ou nas minhas reportagens, mas também porque é aquilo: sofri ataques racistas de uma forma tremendamente pesada há cerca de um mês em um episódio que, inclusive, o Mil Grau, que vimos o que aconteceu ontem nas redes e que teve impacto internacional, foi um dos principais responsáveis por direcionar ódio; e com as recentes manifestações contra o racismo que vemos no Brasil e nos EUA, tenho ganhado mais evidência. Aí percebemos que preto só ganha visibilidade quando é pra falar de racismo, mas enfim.

Tudo isso tem gerado pelo menos um efeito positivo de muita gente se sentir, veja só você, representada por eu ser um jornalista negro que trabalha com esportes eletrônicos. Recebo mensagem de apoio e carinho de muitas pessoas pretas. Então é entender que minha voz é ecoa. Eu não posso me calar. Eu não vou me calar, por mais que a bolha tente.

GG: Como você acha que o movimento #VidasNegrasImportam afetam a cultura nerd?

LQ: É a história da humanidade, mais uma vez, tentando mostrar para pessoas privilegiadas e que não vivem o racismo na pele sobre como tudo é política. Olhar as manifestações que aconteceram após o assassinato do Floyd é entender as motivações de Magneto. Sim, X-Men. A cultura nerd não é puro entretenimento. Isso que é o pior: a cultura nerd é baseada quase que inteiramente na luta de minorias, mas muito fã não entende ou só não faz questão de entender mesmo. X-Men é a maior prova disso.

Magneto não é o vilão da história. Quem são os verdadeiros vilões são os seres humanos, que são incapazes de aceitar algo que é diferente. São eles que querem acabar com os mutantes. Aí percebemos como já é problemático o chavão “Somos todos iguais”. A humanidade é bela exatamente por ser diversa e múltipla.

A história já mostrou o caráter daqueles que defendem a hegemonia de uma raça, de um único discurso. X-Men é a maior mensagem possível sobre como minorias sofrem. Então quando o diálogo e o bom senso (Xavier) não são aceitos por quem oprime (humanos), a radicalidade (Magneto) surge como consequência desesperadora para que, enfim, se haja mudança.

Não se pode confundir a violência do oprimido com a do opressor. São pesos diferentes. Óbvio que violência não se justifica, mas as conquistas das minorias não vieram com café e bolo. Curioso que estou falando de dois personagens brancos que são inspirados em duas figuras negras importantíssimas : Martin Luther King e Malcolm X. Duvido que a franquia tivesse sucesso se eles fossem, realmente, negros no desenho.

Recomendação: Além de Os Cavaleiros do Zodíaco e X-Men, vale acompanhar o trabalho de Luiz através do Twitter e a leitura do artigo que ele escreveu sobre a importância de falar sobre o racismo na comunidade de eSport

Taína Felix – Produtora cultural na Game e Arte e dos jogos “A Nova Califórnia”e “AMORA”.

GG: Quais produtos nerds (games, HQs, animes, etc) te influenciaram a ser quem você é hoje como uma pessoa geek?

Taína Felix: Creio que tenha entrado no universo geek através do cinema. Como comecei a estudar teatro bem nova, as referências em atuações sempre me chamavam atenção. Porém, ainda criança, meu pai- um nerd das antigas, maluco por quadrinhos do X- Men e ficção científica – apresentou-me aos filmes de ficção e futuros distópicos, como O Planeta dos Macacos, ou, já uma adolescente, às sagas épicas como O Senhor dos Anéis.

Os games e animes entraram na minha vida tardiamente, aos 22 anos, quando conheci Jaderson, meu sócio, e me encantei com as possibilidades que este novo universo me trazia.

GG: Você sente que algumas produções repercutem estereótipos negativos do povo negro? Como deve-se combater isso?

TF: Sim, não só sinto como vejo, e teria inúmeros exemplos para citar. Seja no cinema, nas HQs ou nos games, trabalhar com o esteriótipos de corpos negros é muito comum dentro das produções culturais.

O fato das produções serem construídas, majoritariamente, por pessoas não-negras faz com que o olhar para a representação do corpo ou dos referenciais da cultura negra sejam tratados de maneira superficial, sem que se leve em consideração a profundidade de cada personagem e/ou menção cultural que se faça sobre nós.

“Para que este cenário se transforme, é preciso que saiamos da posição de representados, para a função de criadores de nossas próprias histórias. “

Seja o homem negro bruto, agressivo, violento, velho místico, ou; a mulher hipersexualizada, servil, cuidadora ou escandalosa, somos colocados nas “funções sociais”que a sociedade espera que ocupemos nessas narrativas da indústria cultural.

Para que este cenário se transforme, é preciso que saiamos da posição de representados, para a função de criadores de nossas próprias histórias. Significa dizer que devemos tornar nós negros em sujeitos históricos, ou seja, capazes de falarmos sobre nós mesmos, ser protagonista nos processos de criação de nossa imagem enquanto sujeito dentro das produções culturais.

O que faz Spike Lee e Yasmin Thayná no cinema, Fábio Kabral na literatura Afrofuturista, Raquel Motta e Marcos Vinicius, da Sue The Real nos games.

Game “A Nova Califórnia” é baseada na obra homônima de Lima Barreto

GG: Quais são as barreiras que limitam a produção negra no seu setor?

T.F: Existem algumas barreiras, algumas delas aparentemente indiretas como o sistema educacional deficitário que forma pessoas de maneira desigual no Brasil. Mas, existem barreiras reais, como a falta de acesso aos meios de produção. Tecnologias são caras, construir uma carreira em tecnologia no Brasil não é simples para alguém que não pôde frequentar boas escolas, teve acesso aos bens culturais e sequer tenha vislumbrado uma carreira na área.

É sempre complexo falar sobre este assunto sem pensar no caráter interseccional entre raça e classe que dificulta o acesso de grande parte dos negros em espaços de aprendizagem formal. Ser um artista 2D ou 3D, uma programadora, um sound designer requer recursos técnicos e teóricos que poucas pessoas dispõem.

Se a formação não é satisfatória, como este profissional chegará ao mercado de trabalho nos estúdios de desenvolvimento de games e competir de igual pra igual com quem teve acesso a tudo isso?

O racismo estrutural de que tanto falamos, em praticamente todas as conversas nos últimos tempos, tem a ver com a manutenção desse ecossistema.

É todo esse ecossistema que precisa ser repensado para diminuirmos essas barreiras de acesso e permanência de profissionais negros na indústria de games.

O quando a falta de oportunidades iguais de educação afeta o número de profissionais negros dentro dos estúdios? Assinando de fato o game design dos jogos, culminando na construção de narrativas e personagens diversos? Percebe? É todo esse ecossistema que precisa ser repensado para diminuirmos essas barreiras de acesso e permanência de profissionais negros na indústria de games.

(Amora é outro game da Game E Arte que relata o amor entre uma vampira e um humano)

GG: Como se sente, como pessoa negra, por ocupar um espaço que tem pouca representatividade e como é o peso ao se tornar uma referência?

T.F: Tenho sentimentos bem complicados sobre essa questão. Sinto-me triste por não sermos muitos ainda. Segundo o último Censo da Indústria de Games de 2018, representamos apenas 10% dos profissionais na área.

Apesar de falar sobre representatividade negra na indústria desde 2017, não sinto que deva ser a única referência, não é bacana que apenas uma pessoa carregue essa posição, visto que isso incentiva uma espécie de meritocracia da qual eu não concordo.

“Hoje, eu falo sobre representatividade negra nos games com o objetivo de encontrar essas outras pessoas negras desenvolvedoras, pois sei que elas estão aí.”

Eis aí a minha missão neste momento, encontrar outras pessoas negras que sejam também referência em seus trabalhos. Não sinto um peso porque não o carrego sozinha, e muitas pessoas já o carregavam antes de mim, como a Professora Eliane Bettocchi da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Hoje, eu falo sobre representatividade negra nos games com o objetivo de encontrar essas outras pessoas negras desenvolvedoras, pois sei que elas estão aí. A diferença é que eu sou privilegiada por morar em São Paulo, conhecer pessoas e espaços que deram-me condições de falar sobre o tema.

GG: Como você acha que o movimento #VidasNegrasImportam afetam a cultura nerd?

T.F: Creio que o movimento deva afetar a sociedade como um todo. Entender que o racismo não é um problema exclusivo dos negros mas de toda a sociedade, é um ponto importante para seguirmos na luta antirracista. E, com a cultura Nerd não seria diferente, afinal, tudo que fazemos, criação ou consumimos é político. Até nossa não-ação sobre o movimento já é uma posição política: a omissão.

Imaginar que o movimento #VidasNegrasImportam também faça parte desse imaginário é de extrema importância para a mudança e tomada de consciência de quem vive e consome os bens e as produções culturais desse recorte.

A cultura nerd tem grande influência na construção do imaginário coletivo de crianças, jovens e jovens adultos. Então, imaginar que o movimento #VidasNegrasImportam também faça parte desse imaginário é de extrema importância para a mudança e tomada de consciência de quem vive e consome os bens e as produções culturais desse recorte.
#VidasNegrasImportam é sobre poder seguir vivendo enquanto negros nessa sociedade que sempre nos excluiu, mas é também criar futuros possíveis com as linguagens artísticas pelas quais também fazemos parte, pois como disse lá em cima, reivindicaremos o lugar de protagonistas de nossas histórias.

Recomendações: Para acompanhar mais o trabalho da Taína Félix, tem o site Game e Arte em que também fazem uma indicação de game studios de minorias.

Os games A Nova Califórnia e Amora estão disponíveis no Steam.

Lorrane Fortunato – Escritora e editora do Resistência Afroliterária, portal focado em divulgar literatura feita por e para pessoas negras

GG: Quais livros te influenciaram a ser quem você é hoje?

Lorrane Fortunato: Minha mãe sempre foi uma leitora assídua e me influenciou muito a ler. Como eu era de uma cidade muito pequena, lia muito o que tinha na biblioteca da cidade, mas não me sentia verdadeiramente representada.

Quando li Entre 3 Mundos, de Lavínia Rocha, muita coisa mudou: pela primeira vez vi uma adolescente negra, como eu na época, heroína de uma aventura. Livros fantásticos como O Ceifador, de Neil Shusterman e Kindred de Octavia E. Butler e Rani e o Sino da Divisão, do Jim Anotsu nos permite ver rostos negros no futuro.

Os livros da Solaine Chioro, Olivia Pilar, Henri B. Neto, por exemplo, me fazem enxergar as possibilidades de pessoas negras darem e receberem amor. Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Chimamanda Ngozi Adichie me ajudam a me compreender enquanto mulher negra.

Por isso, criei o Resistência Afroliterária, para possibilitar que cada vez mais pessoas negras se sintam representadas e pessoas não-negras nos enxerguem e entendam.

GG: Você sente que algumas produções repercutem estereótipos negativos do povo negro? Como deve-se combater isso?

L.F: Algumas não, quase todas. Tem uma pesquisa da professora Regina Dalcastagnè pela Universidade de Brasília (UnB) que fala os livros nacionais lançados pelas três maiores editoras do Brasil em 15 anos . Além de mostrar que autores não-brancos são apenas 2,4% desses livros, assim como a maioria dos personagens retratados são brancos, as ocupações desses personagens chamam muito a atenção. Enquanto os personagens brancos costumam ter ocupações ditas nobres na nossa sociedade (dona-de-casa — a principal ocupação de mulheres brancas, o que também mostra o machismo nas obras — artistas, escritores, professores etc.), os negros tem ocupações repudiadas ou desmerecidas por essa mesma sociedade (criminoso, escravo, prostituta, doméstica). E essa carga de estereótipos negativos sobre pessoas negras não são exclusivas da literatura brasileira; nem da literatura em si.

“A melhor forma de combater isso é: ouvir pessoas negras”

A melhor forma de combater isso é: ouvir pessoas negras. E não apenas quando elas falam racismo ou negritude; isso sempre vai estar envolvido de qualquer maneira, nas relações amorosas, nas aventuras fantástica, nas memórias de infância. Mas não precisa ser apenas sobre isso, nós também contamos diversas tantas histórias. Parafraseando o discurso de Viola Davis no Emmy, “o que nos separa dos outros, é a oportunidade”. Das produtoras e editoras, precisamos de espaço para produzir. Dos consumidores, que invistam no que produzimos.

Lorrane é escritora e dentre suas obras estão “A Rota que me levou a você” e “A promessa que você me fez”

GG: Quais são as barreiras que limitam a produção negra no seu setor?

L.F: Esses mesmos dados da pesquisa, que mostram a predominância de autores brancos, mostra que o mercado editorial tem uma hegemonia racial. Entrar no mercado tradicional sendo negro, é muito difícil. E ser reconhecido por isso, mais ainda. Quando falamos de um grande reconhecimento cultural, chamamos essa obra de “clássica”.

“Existem diversas formas que as obras produzidas por pessoas negras são desprezadas e desmerecidas no mercado do entretenimento.”

No Afroliterária, fizemos um texto sobre porque geralmente não vemos autores negros associados a palavra “clássico”. Clássico vem do latim classicus, uma palavra usada pra designar algo pertencente a mais alta classe romana, algo que é de primeira classe em um contexto elitista, imperialista, branco, europeu. Por definição, não nos inclui. Isso significa separar Machado de Assis de sua negritude, ou não tratar Carolina Maria de Jesus como clássica porque sua negritude é inseparável de sua obra. Existem diversas formas que as obras produzidas por pessoas negras são desprezadas e desmerecidas no mercado do entretenimento.

GG: Como se sente, como pessoa negra, por ocupar um espaço que tem pouca representatividade e como é o peso ao se tornar uma referência?

L.F: Por um lado, é interessante ser uma pessoa negra que consegue galgar um espaço e produzir algo representativo. Por outro, muitas vezes sou vista como “a referência”, “a única” ou “a primeira” e eu preferia ser “uma entre muitas outras”. Por isso, inclusive, que o Afroliterária existe. A nossa missão é ceder cada vez mais espaço para proliferar literatura e cultura negra para além de mim.

GG: Como você acha que o movimento #VidasNegrasImportam afetam a cultura nerd?

L.F:  Ainda que haja alguma mudança pra melhor, é muito, muito pouco comparado com o valor das vidas negras que precisaram ser perdidas para que tivéssemos uma chance de ser ouvidos.

A cultura nerd traz engajamento para o mundo do entretenimento, e é também hegemonicamente branca. Então, a representatividade negra é um tema pouco refletido. Ganhou um pouco mais de repercussão nos últimos anos, sobretudo com os filmes do Pantera Negra e Homem-Aranha no Aranhaverso.

Mas, ainda assim, poucos exemplos em relação a quantidade de filmes de heróis que já foram feitos. Na literatura fantástica também são passos lentos. A maioria esmagadora das produções ainda são brancas. Mesmo que temos exemplos como N.K. Jemisin (a única pessoa a ganhar 3 Hugo Awards de melhor livro de fantasia seguidos), Octavia E. Butler (conhecida como “A Grande Dama da Ficção Científica”, com dezenas de prêmios desde os anos 70 e só foi publicada no Brasil em 2017) e outros tantos autores negros que se provam incríveis, mas que tem pouco espaço e aceitação comparado a autores brancos no mercado.

Além do Resistência Afroliterária, Lorrane é criadora da #LeituraPreta, tag para incentivar a leitura de livros escritos por pessoas negras.

Recomendação: Na entrevista, Lorrane indica o livro “Filhos de Sangue e Osso” de Tomi Adeyemi. “Se passa numa África fantástica e magias baseadas na cultura iorubá. Só isso já traz um frescor novo para a fantasia. “

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