A alegria da ficção científica é que ela permite ao público imaginar um mundo sem limitações relativas a gêneros.

Esse ano marca o aniversário de 25 anos do lançamento de Star Trek: Voyager. E de algumas maneiras, a série era como qualquer outra parte da franquia que a antecedeu – elásticos na testa, uniformes coloridos e a moral da semana – mas um elemento realmente se destacou: Kate Mulgrew foi escalada para interpretar a primeira capitã mulher da franquia.

Em um artigo da Entertainment Weekly, em 1995, Robert Beltran (que interpretou o segundo em comando na nave, Comandante Chakotay) não se segurou. “Não existe realmente precedentes para a situação dela. Exceto talvez Joana D’Arc”, ele afirmou. “E mesmo ela tinha a benção de Deus”.

É bastante bizarro ler um comentário desses hoje em dia. Seria algo tão grande ter uma mulher sentando na cadeira do capitão? E mesmo agora, 25 anos depois, a personagem ainda é relevante?

Janeway existe há mais tempo no universo da cultura pop do que alguns dos nossos leitores têm de vida. A forma como vemos Janeway através do tempo fala muito sobre o machismo de cada época. Voyager não é TV contemporânea. E assim como muitas outras séries de ficção científica dos anos 1990, a série tem traços de racismo (como a flauta no fundo para indicar que Chakotay, único personagem nativo-americano da série estava na tela), além é claro das tomadas quase voyeurísticas sobre as personagens femininas.

Porém, a Capitã Janeway continua sendo amada pelos fãs da série, especialmente pelas mulheres. Outros elementos da série podem ter envelhecido muito mal, mas ela definitivamente não é um deles.

Seria fácil minimizar essa lealdade como um subproduto de boa interpretação em um universo clássico, e claro, pelo fato de Janeway ser interpretada por uma atriz carismática, mas isso não é tudo que a define. Ao longo de sete temporadas, ela toma diversas decisões que não chegariam às telinhas hoje. Em um episódio particularmente desconfortável, ela percebe que havia acreditado “muito rapidamente” na história de uma mulher da tripulação que havia denunciado ser vítima de violência física.

É claro, temos toneladas de momentos genuinamente comoventes da Capitã Janeway, mas ela não é o modelo perfeito de comportamento ou empoderamento nos dias modernos. Então por qual motivo ela continua parecendo tão contemporânea?

Hoje não é tão difícil encontrar protagonistas femininas corajosas e inteligentes na televisão. Essas mulheres normalmente são lutadoras feministas (ainda que sejam mulheres “comuns”), que encontram sucesso apesar do machismo ao seu redor. E mesmo quando personagens femininas não são afetadas pelo machismo regularmente, os roteiristas costumam escrever aquele “episódio especial sobre machismo” para torná-las mais reais (como Amy revelando ter sofrido assédio sexual no passado, em Brooklyn 99).

É claro, ainda é empolgante ter essas personagens na TV, e essa resistência é parte do que as torna inspiradoras, mas também há algo de empolgante em ver personagens cujo gênero nunca foi um obstáculo a ser superado.

A Capitã Janeway nunca teve de superar o machismo de seus colegas – o fato deles a levarem a sério é algo natural. No mundo de sua série, seu respeito por ela é considerado completamente normal. Dessa forma, não era exatamente a Capitã quem superava seus limites. Eram os personagens ao seu redor e a forma como eles respondiam a sua presença e liderança.

Quando suas decisões eram questionadas, isso acontecia de forma justificada e não porque as pessoas não confiavam em sua inteligência ou capacidade.

Mesmo quando os roteiristas de Voyager tropeçavam em estereótipos machistas, os personagens não pareciam ser motivados por misoginia. No mundo da série, ao menos, a Capitã Janeway existia nos seus próprios termos.

Fala por si só o fato de a única personagem comparável à Capitã ser a encarnação de Jodie Whittaker como a Doutora, em Doctor Who. Uma personagem literalmente de outro planeta.

E isso não quer dizer, de maneira alguma, que séries feministas devem ser cegas em relação ao gênero. Se fizessem isso, elas correriam o risco de apagar as experiências reais de mulheres ao redor de todo o mundo, e boa parte do brilho dessas séries vem do fato de revelarem as realidades de grupos marginalizados. Mas não precisamos ver todas as personagens serem atacadas de maneira machista o tempo todo.

O que torna a Capitã Janeway excepcional não é a falta de lideranças, ícones, artistas e cientistas mulheres, mas o fato de que elas normalmente são definidas principalmente por seu gênero. E pensando na forma como o machismo afeta as nossas vidas, é algo diferente imaginar um mundo em que o seu gênero de fato seja algo irrelevante.

Ter uma mulher sentada na cadeira de capitã não parece mais algo saído de uma obra de fantasia, mas uma mulher que seja respeitada mesmo quando comete erros? Uma mulher que não precisa lidar com o machismo ao seu redor, e que ocasionalmente seja o tipo que dá risada disso? Que não precise ter dúvidas sobre elogios, fingir que é inferior por cortesia ou abaixar a cabeça para um chefe? Isso sim ainda parece ser ficção científica.

Ainda que nenhuma de nós queira que a televisão siga esse caminho, às vezes é bom poder escapar para um mundo sem machismo. A alegria da ficção científica – se é que podemos chamar assim – é que ela permite ao público imaginar um mundo sem limitações relativas a gêneros. E personagens como a Capitã Janeway nos permitem encontrar versões de nós mesmas que gostaríamos de viver, caso tivéssemos a chance.


Texto traduzido do The Mary Sue.

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