Quando a empatia surge do lugar que você menos esperava.

Não há muitos exemplos bons sobre como é viver com uma doença respiratória terminal pelo mundo. Os jogos em geral utilizam personagens nessa condição sem tratá-los como pessoas, de fato. Na verdade, eles acabam em geral sendo objetos, pontos trágicos na história dos heróis que tentam causar alguma comoção. E as pessoas que convivem com essas doenças na vida real não conseguem encontrar algo sequer próximo de uma representação fidedigna de como é viver com uma doença terminal na cultura pop em geral.

Pensando nisso, Eirik Gumeny resolveu escrever ao Polygon sua experiência jogando, como portador de fibrose cística – que traduzimos a seguir.

* Contém spoilers sobre a trama de Red Dead Redemption 2 *

Eu havia jogado apenas algumas horas de Red Dead Redemption 2, o épico de faroeste da Rockstar, quando descobri o final da história: não com nosso herói, Arthur Morgan, cavalgando em direção ao por do sol, mas com sua lenta e agonizante morte, enquanto sucumbia para a tuberculose.

Isso obviamente não é algo que eu esperava encontrar quando entrei na internet buscando descobrir como começar uma missão com uma boa recompensa.

Eu entendi a poética sombria presente em um final como esse, é claro; seria ao mesmo tempo inevitável e irônico. Mas eu não tinha certeza se realmente queria terminar um jogo com esse ponto em particular na narrativa, especialmente quase tendo morrido de fibrose cística. Mais de uma vez, na verdade.

Acabou que meu desejo de fingir ser um cowboy e de me vingar de cada puma que eu visse pelo caminho pela morte do meu cavalo, no primeiro jogo, provou ser mais forte do que meu medo de entrar em uma espiral de ansiedade pós-traumática. Além disso, era um jogo. Quão real poderia ser a representação de uma doença bacteriana fatal ali?

Mas Red Dead Redemption 2 apresentou a mais precisa e realista representação de uma vida com uma doença terminal que eu já vi. Em qualquer meio de mídia.

O diabo está nos detalhes

Red Dead

A atenção aos detalhes em Red Dead Redemption 2 beira ao impossível. Mesmo uma “rápida” tentativa de terminar o jogo acaba exigindo do jogador cerca de 60 horas ao lado de Arthur e do resto da turma dos Van der Linde. Isso é o equivalente à narrativa de cerca de 20 filmes. 60 horas é muito tempo para se passar com um único personagem, e esse tempo permite vários curtos momentos de realismo. De coisas que acabam sendo maquiadas em outros jogos e histórias.

E quando o assunto é uma doença terminal – a realidade sempre presente da doença, que te faz lembrar de sua existência diariamente – o diabo está nos detalhes.

Tuberculose e fibrose cística são doenças com sintomas muito similares. Fadiga constante, perda de apetite e a incapacidade de ganhar peso, dificuldades respiratórias, tosse persistente e expectoração tanto de muco quanto de sangue. Ambas as doenças são progressivas, o que quer dizer que vão piorar com o tempo. As duas são fatais, caso a doença progrida o suficiente. E os dois diagnósticos são muito similares de fato, ainda havendo dúvidas sobre qual das duas foi realmente a responsável pela morte do famoso pianista Frederic Chopin.

Eu não morri, obviamente, mas cheguei bem perto. Cheguei a estar tão doente quanto é possível para um ser humano ficar sem morrer. Em um certo momento, eu só tinha 12 por cento da capacidade respiratória e era incapaz de levantar da cama sem ajuda, e eu tossi tanto sangue que foi necessária uma cirurgia de emergência – que inclusive rendeu um artigo científico médico.

Daí eu passei por uma cirurgia de transplante duplo de pulmões, e tudo passou. Então talvez eu não sabia como é ser um cowboy na virada do século, morrendo esgotado, mas posso dizer que tenho uma ideia próxima de como deve ter sido.

Quando você não tem o privilégio de esquecer que está doente

A coisa mais impactante na representação da doença de Arthur em Red Dead Redemption 2 foi a sua consistência e a clara bagunça causada por ela. As representações de doenças crônicas na cultura pop costumam ser versões romantizadas e imaculadas da experiência.

Todos continuam sendo galãs de Hollywood, no fim das contas, e as expulsões violentas de fluidos são mantidas no mínimo possível, relegadas a uma cena aqui ou ali para lembrar ao público que essa pessoa é doente. As vezes, pequenas quantidades de sangue são mostradas no guardanapo ou lenço depois de uma pessoa tossir um pouco, e já estamos todos treinados a entender que isso significa que a pessoa está condenada.

Vejam o exemplo de Moulin Rouge:

Red Dead Redemption 2, por sua vez, não é sobre mostrar Arthur caindo de seu cavalo ou estragando uma reunião com suas interrupções até ser retirado do local. Mas o peso real dessa condição vem com o peso constante de sua respiração nos capítulos mais avançados e com a forma com que ele simplesmente senta e tenta recuperar o fôlego por um tempo dolorosamente longo após algumas missões. Eu não estou em uma posição em que posso esquecer seu sofrimento.

O detalhe que bate mais forte, porém, é um que não pode ser explorado em nenhum outro meio que não um videogame: Arthur não consegue recuperar adequadamente seus “cores” durante o capítulo seis, que é próximo do final do jogo.

Os “Cores” (Núcleos) são essencialmente a versão de Red Dead Redemption 2 dos pontos de vida ou da “barrinha de poder”. Seu “core” de saúde diminui sempre que ele sofre dano, e caso acabe, ele morre. Esforços feitos com ações importantes como correr e lutar, drenam seu “core” de estamina, e caso ele acabe, limitações severas impactam o que ele pode fazer no jogo em geral.

Eu sei como é isso. Eu comia apenas alguns palitinhos de peixe por dia enquanto esperava pela minha cirurgia. Eu simplesmente não podia comer mais do que isso; meu corpo não queria a comida e eu não conseguia metabolizá-la. A única forma que eu tinha de me recuperar – na medida do possível, de qualquer maneira – era dormindo. Tarefas se tornaram absolutamente impossíveis e eu passava a maior parte dos meus dias dormindo, tentando recuperar alguma energia. Era a única coisa que eu podia fazer para me ajudar e tentar recuperar o meu derrotado corpo.

E é exatamente desta forma que o jogo trata a doença de Arthur. A quantidade de comida e bebida que você consegue consumir começa a ser limitada no final da história, assim como seu impacto na restauração. Arthur precisa dormir para recuperar os “cores”. Não existe outra maneira. Eu sou forçado a decidir se vale a pena tentar fazer qualquer coisa além das missões principais. Obrigações começam a te oprimir e dizer sim para uma coisa começa a ser dizer não para todas as outras coisas do dia virtual.

Eu também percebi outros personagens comentando sobre a doença de Arthur e seu progresso, e nem sempre de uma forma legal.

A Rockstar entende que os relacionamentos mudam após diagnósticos desse tipo, e que as pessoas podem começar a tratar os indivíduos afetados com simpatia, desprezo ou uma combinação de ambos. Ou seja, elas não reagem imediatamente com medo. E outras pessoas podem não estar interessadas em esconder as suas reações.

Eu escondi a minha doença tanto quanto pude enquanto crescia, quando esconder a minha condição ainda era possível. Eu nunca soube como alguém iria reagir. Uma tossida mais forte poderia fazer estranhos se retraírem e afastarem, ou poderiam correr em minha direção perguntando se eu estava bem, sempre no mesmo tom preocupado. Algumas pessoas ficavam irritadas se eu tossisse demais, dizendo que eu deveria ter ficado em casa.

Talvez eles pensassem que fibrose cística, uma doença genética não-infecciosa, fosse contagiosa. Talvez eles pensassem que eu deveria ter ficado na minha cama e desistido. Ou talvez tenham pensado que eu tinha alguma outra coisa e estava sendo descuidado. O que era raro de acontecer era alguém perguntar, ou tentar entender a realidade da situação antes de partirem para algum tipo de julgamento.

E desconhecidos não eram as únicas pessoas a reagirem mal, o que é outra coisa que Red Dead Redemption 2 captou muito bem.

Os próprios membros do bando de Arthur mudaram seu comportamento conforme Arthur ia se tornando mais visivelmente adoentado. Alguns se preocupavam com ele, como Tilly, ainda que ela tentasse culpá-lo pela doença. Ela afirmou que estava preocupada com a saúde de Arthur quanto ele tenta falar com ela no acampamento, mas ela também ficou chateada que ele não estava se cuidando melhor.

Já o integrante da gangue, Micah Bell, por sua vez, se tornava cada vez mais hostil com relação a ele e usava o apelido “Black Lung” (pulmão preto) sempre que podia. Ele via a tuberculose de Arthur como uma fraqueza, e Arthur como fraco por contrair a doença. Outro membro do grupo, Javier Escuella, subitamente se tornou retraído também, dizendo que ele deveria se afastar dos assuntos da gangue e “se preocupar apenas com aquela tosse”.

Apesar de haver obviamente outros pontos da trama envolvidos nessa parte do jogo, é importante ressaltar que tanto Micah quanto Javier tratam Arthur de forma mais agressiva após o seu diagnóstico. Esses personagens anunciam sua virada para a vilania ao reduzirem Arthur a nada além de sua doença.

A doença é parte de você e não o contrário

E isso é, de fato, o ponto crucial de tudo isso: Red Dead Redemption 2 jamais define Arthur Morgan por sua tuberculose. Ele é apresentado como muito mais do que a doença, apesar da onipresença de seus sintomas e de todo o mundo imaginado reagir a sua doença que não para de avançar. Ele tem poder sobre sua vida e sua personalidade não começa e nem termina na doença.

É permitido que Arthur fique furioso, mesmo no momento mais flagrantemente “doente” de todo o jogo. Arthur entra no consultório do médico no final do episódio cinco e recebe a notícia, em termos inequívocos, de que tem tuberculose. Ele xinga o médico e torna claro que ele ainda é o Arthur. Ele ainda tem que fazer o que tem que ser feito. Sua doença torna isso mais difícil, mas não define o que ele é ou o que ele tem que fazer.

arthur

A narrativa de Arthur não se curva especificamente sobre a tuberculose. Ele se desenvolve do fiel tenente de Dutch ao seu arquirrival com o tempo, e essa história ainda poderia existir ainda que houvesse alguma forma de impedir que Arthur contraísse a doença. Sua tuberculose é um detalhe na história e não a história em si.

E essa é a parte que a maioria das representações de doenças crônicas trata errado. Uma pessoa não perde sua essência por causa de um diagnóstico de uma doença terminal, e ser forçado a focar em sua saúde não significa que o resto dos seus problemas somem.

Por mais devastadora que uma doença como tuberculose ou fibrose cística possa ser, e por mais que cuidar de si mesmo seja uma prioridade, o mundo não para simplesmente porque você não está se sentindo bem. Muitos de nós fazem o melhor que podem em situações que por vezes podem estar completamente fora do nosso controle. Nossas vidas continuam.

Eu trabalhei com menos de quarenta por cento de capacidade pulmonar por anos, sentado em uma mesa e atendendo telefones até não ser mais capaz de falar. Arthur não tem dias de descanso tampouco. Ainda existem pessoas que precisam ser salvas, esquilos a serem caçados, pontes a serem explodidas e carruagens a serem saqueadas. Arthur passa seus últimos momentos trocando socos, conseguindo tempo para seus amigos possam escapar. Ele ainda está olhando para o mundo pensando no que ele pode fazer em vez de se focar em suas próprias limitações.

Eu finalizei Red Dead Redemption 2 há poucas semanas, e deixei Arthur naquele cume, ensanguentado e quebrado. Mas Arthur Morgan ainda está comigo. Eu, uma criança magricela dos subúrbios de Nova Iorque, me enxerguei nele, num cansado e rabugento cowboy, de formas que jamais me enxerguei em nenhum outro até então.

Arthur sempre estará lá para me lembrar que eu sou mais que a minha doença. Que ainda há coisas a se fazer. Que, apesar de eu não estar sempre aqui, eu estou agora, e isso quer dizer que ainda há tempo para fazer as coisas.


Texto traduzido e adaptado da Polygon.

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