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Avatar: A Lenda de Aang é uma das séries de animação mais amadas do século XXI. Mas conforme vai passando o tempo, e a série da Nickelodeon vai se tornando “obsoleta”, poucos podem ser capazes de perceber o nível de dedicação e trabalho empregados em seu desenvolvimento – especialmente quando falamos sobre o uso de artes marciais. Os estilos apresentados durante a série foram coordenados pelo Sifu (Mestre) Kisu, um praticante de diversos estilos de artes marciais e consultor do tema para a série. Em entrevista à Polygon, ele afirmou:

Eu fui iniciado nas artes marciais quando tinha sete ou oito anos de idade, pelos meus tios malucos. Eles foram para o exército e aprenderam Judô, e então retornaram arremessando um ao outro por todo o apartamento.

Na mesma época, Bruce Lee agarrava seu papel como Kato, na série O Besouro Verde (1966). E Kisu descobriu que precisava fazer aquilo.

Do treinamento com amigos da família até a prática de Taekwondo em uma estação da marinha na Baía de Kāneʻohe, no Havaí, Kisu passou anos aperfeiçoando sua prática em artes marciais. Com pouco mais de 20 anos, ele conheceu seu atual professor, Kenneth Hui, e se apaixonou com o estilo Shaolin do Norte. “Eu sou seu aluno desde então, mesmo que agora eu tenha duas gerações de alunos meus”, explicou Kisu.

Então, como isso levou a Avatar? Ele responde: “Um dia eu estava ensinando no quintal de minha casa, em Los Angeles, e um dos criadores, Bryan Konietzko, era um dos meus alunos”. Apesar das inúmeras tentativas de Konietzko para convencer Kisu a trabalhar no projeto, o professor estava decidido a não participar mais da indústria de entretenimento, depois de ter atuado como dublê em séries como Power Rangers e BeetleBorgs. De acordo com Kisu, não é nada fácil ser um dublê em Hollywood. “É algo muito político. É muito traiçoeiro e cheio de facadas pelas costas”.

Assim, Kisu rejeitou a proposta inicial de Konietzko. E várias propostas subsequentes. E isso se repetiu até que o produtor apresentou alguns dos desenhos que havia feito sobre o projeto, e que o convenceram de que esse era um projeto que valia a pena trabalhar. “Eram algumas das mais incríveis artes que eu já tinha visto em minha vida. Então as lutas de Avatar começaram no quintal da minha casa”.

Kisu e a equipe então começaram a trabalhar juntos em um processo extremamente colaborativo. Os roteiristas da série encaminhavam roteiros a ele, que adicionava inovação às cenas de ação. “Mas os melhores escritores são aqueles espertos o suficiente para não tentar escrever cenas de ação”, afirmou ele, gargalhando.

A dobra rapidamente se tornou muito mais do que uma forma de combate. Para cada “Zuko atira uma bola de fogo” no roteiro, haviam vários pequenos momentos como Aang movendo a água caída na mesa de volta para o copo. Kisu dava instruções sobre como aquilo poderia ser visualizado: a respiração, posições, movimentos de preparação, execução do movimento, manifestação do elemento e a subsequente movimentação necessária para encerrar aquele ciclo para uma posição natural.

“Originalmente, a dobra seria encaroçada nessa grande categoria de artes marciais que criavam pedras voadoras e faziam o fogo sair das mãos”, afirmou Kisu. Mas conectar esses elementos com artes marciais envolveria um profundo conhecimento sobre o corpo. Kisu aponta que seu professor – com quem trabalha há mais de 40 anos – mantinha um grande currículo, e como resultado, poderia combinar estilos que dominava com elementos que ressoassem profundamente com eles. Para ele, por exemplo, o Tai Chi e a dobra de água combinavam perfeitamente.

Assim que as coisas começaram a se encaixar, a equipe desenvolveu um teste a lápis em uma renderização de baixa qualidade em animação. Aos olhos de Kisu, o piloto (que só se tornou público recentemente) era “bem fraquinho” em comparação com tudo que a série conseguiu alcançar. “Eu acho que acabamos expandindo os limites entre 2D e 3D. E eu nunca havia me envolvido com nada como isso”.

Kisu se reunia com a equipe de animação de três a quatro vezes por episódio, tentando tornar o trabalho o mais imaginativo possível. A primeira discussão sempre tratava sobre as intenções; a segunda trabalhava movimentos que faziam sentido com o roteiro; e só a partir da terceira é que a animação começava. Às vezes, uma quarta reunião acontecia apenas para colocar a cereja sobre o bolo.

Levamos muito tempo com as artes marciais. Se você já viu filmes de Hong Kong, as cenas de luta são realmente envolventes, mas se assistir uma produção europeia ou americana, elas empalidecem na comparação.

Ele aponta que, especificamente em produções americanas, esse tipo de aplicação de artes marciais individualmente é algo inédito, e que essa é a forma como a equipe conseguiu expandir os limites do que era possível.

Em termos das artes marciais selecionadas, Kisu optou por utilizar estilos que mais respeitava. “Tai Chi tem uma certa utilidade em si, e pode ser usado para repelir um agressor”, ele explicou.

O Hung Ga, eu sempre tive um grande respeito e um pouco de medo das pessoas que são realmente boas naquele estilo (…) Bagua, eu pratico há 10 anos, e achei que combinaria muito bem com a dobra de ar. Eu não sou um especialista em Bagua, então algumas das coisas que chegaram à série não eram canon.

Seu favorito, porém, é um dos estilos com maior impacto em Avatar: O Shaolin do Norte.

O estilo tem tanta utilidade, e treina o praticante a se defender ou atacar em qualquer direção com pouco ou nenhum impulso. É basicamente tudo que estou praticando atualmente. O Shaolin do Norte é belo – é aerobático, é acrobático, é fisicamente exigente, os chutes longos e altos, as poses baixas. Tem esses ataques com flechas e recuos similares a penas.

Ele continua:

Temos conjuntos de equipamentos que remetem a centenas de anos atrás. A lança, por exemplo era uma especialidade do grande Grão-Mestre, e eu tive sorte o bastante para aprender essa técnica. Eu acho que faço parte da primeira geração de não asiáticos a aprendê-la. Era bastante secreta, e continua sendo até certo ponto. O principal esforço do meu professor ao ensinar as artes marciais tradicionais chinesas é para manter essa cultura viva.

E a série trouxe mais sobre artes marciais do que pode ser percebido com facilidade. Cada um dos estilos individuais da série é ligado a uma mitologia específica, de acordo com Kisu, como as histórias da Margem da Água e dos Três Reinos. “Tivemos consultores culturais, também. Um dos caras não fazia nada além de garantir que a caligrafia estava perfeita”.

E conforme a equipe começava a falar sobre a maneira que essas histórias poderiam influenciar Avatar, em que coisas que não são endêmicas no mundo real podem ser facilmente percebidas, eles começaram a focar em oposições como Yin e Yang, luz e sombra, futuro e passado – a “dualidade da existência”, nas palavras de Kisu.

Nós começamos a explorar os aspectos do que é o Yin e o que é o Yang. Você poderia ter fogo que é Yang, que é aquela explosão enorme capaz de abrir um buraco em um edifício, ou você poderia ter fogo que é Yin, que é quase um buraco negro, capaz de causar uma queimadura inversa. Tanto não está lá que leva tudo consigo.

E foi assim que fenômenos como a dobra de sangue eventualmente entraram na história. “Nós realmente pensamos sobre a física deste mundo, e como o sangue é basicamente composto de água, nós falamos sobre todas essas coisas sombrias que podem ser feitas com a dobra”.

Kisu afirma ainda que levar os poderes até o limite causou alguma preocupação nas pessoas, e algumas ideias foram rejeitadas por medo de “incentivarem comportamento por repetição”. A última coisa que alguém poderia querer é que uma criança pegasse o fluído de isqueiro de seus pais e queimasse a sua casa enquanto tentasse dobrar fogo. Mas ao garantir que a ênfase seria sempre na responsabilidade que surge com o poder, eles criaram uma série para crianças, que por vezes assumia um tom sombrio, mas nunca de uma forma a mergulhar nisso – especialmente se levada em consideração a quantidade de afeto apresentada para equilibrar essa sensação.

Eu achei realmente legal que Aang, em seu fervor para aprender a dobrar fogo, acidentalmente tenha queimado seu melhor amigo. Tem muito disso na série: honra, dever, lealdade, amizade, amor. Eu não acho que vejamos muito disso, pelo menos em produções americanas.

O artista marcial afirma também que a série animada teve pesada influência de animações coreanas, especialmente do filme Céu Azul (2003). A equipe inclusive buscou um dos artistas do filme, Seung-Hyun Oh para dirigir três episódios e o planejamento de história da temporada final.

O final de A Lenda de Aang e toda a história de A Lenda de Korra, sua sequência, foram diferentes de tudo que veio antes. A série se tornou menos sobre inocência, doçura e o lado espiritual da dobra para se tornar algo mais próximo de fenômenos contemporâneos externos a ela. O conceito original da sequência se inclinava ainda mais nesse sentido.

“Korra não foi planejado para ser uma série completa”, afirmou Kisu.

Eles na verdade queriam fazer uma sequência de minisséries sobre as vidas de diferentes Avatares. Korra então teria 12 episódios de duração, e ela perderia os seus poderes. Essa era a moral da história – cada um deles teria um conto de moralidade sobre as vidas de diferentes Avatares, seus sucessos e fracassos, e Korra seria um fracasso por sua falta de espiritualidade. Ela possuía um talento físico, mas faltaria a ela a conexão ao Mundo Espiritual.

As lutas em Korra também evoluíram além do que Kisu havia estabelecido na série original.

Enquanto tentavam descobrir o que fazer em seguida, Bryan, Mike e Joaquim se apaixonaram pelo UFC. Eu acho que é legal, já fiz coisas do tipo quando era jovem, mas não tem muita substância como arte marcial… Eu acho que isso acabou se tornando um aspecto claro em Korra.

Apesar disso, Kisu mantém uma quantidade imensa de boas lembranças da época que passou junto a equipe, e de como conseguiram tornar Avatar um imenso fenômeno cultural.

Ser levado a série naquele ambiente foi um grande chute na cabeça no começo… O nível de respeito com que começamos foi de um sentimento realmente incrível. Eu ainda tenho uma caixa cheia de fitas VHS e DVDs – nós gravamos cada sessão de referências, e fizemos isso três vezes pra cada um dos 61 episódios… Eu até cheguei a engasgar falando sobre isso, porque eu assisti Bryan e Mike, e outros animadores, trabalhando por 14 a 18 horas por dia, só sentados lá desenhando, e isso quebra suas costas. Eu tenho muito respeito por esses caras.

Como Kisu reforça, cada episódio foi resultado do esforço coletivo de centenas de pessoas – de animadores, escritores, equipe de pós-produção, coloristas, artistas e consultores que fizeram coisas como ele. “Nunca existiu nada como isso, e nunca existirá novamente”, afirmou.

O legado pode ser encontrado no mundo real. O maior pagamento pelo trabalho, para Kisu, foi ver a imensa popularização das artes marciais. Antes de Avatar, ele afirma nunca ter visto crianças procurando por aulas de Tai Chi – isso era considerado algo para idosos. E agora, a comunidade Shaolin do Norte está em franco crescimento.

Eu não me levo tão a sério e não estou por aí soprando um berrante dizendo como eu sou incrível por ter feito algo como isso. Eu estou é realmente feliz que isso pode causar algum impacto, que as crianças que eram fãs disso quinze anos atrás agora são pessoas crescidas. E que elas estão pelo mundo, ditando os tempos, e eu gosto de pensar que nosso trabalho ajudou a fazer uma geração melhor de pessoas.


Fonte: Polygon

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