Infelizmente a Disney fez as escolhas que a gente temia sobre o remake…

*** ALERTA DE SPOILER SOBRE O LIVE-ACTION DE MULAN ***

A animação original de Mulan, da Disney, foi um filme amado por muitas pessoas apesar de seus claros defeitos. Lançado em 1998, o filme não era um dos principais projetos da Disney. A trilha sonora é excelente, com exceção de uma música que todos sabemos qual é (dá pra cantar, mas mesmo na época já era bem fora de seu tempo).

A animação era claramente inspirada pelo minimalismo e em traços de arte chinesa, mas não possui o nível de detalhes e profundidade de outros filmes da empresa no mesmo período. Mesmo Mushu e aquela marcante cena em que Mulan corta o seu cabelo falham nesse sentido porque eles, infelizmente, representam uma profunda falta de entendimento da Disney sobre a cultura chinesa. Mas muitos de nós amamos Mulan pelo fato dela ser a primeira heroína guerreira com mais visibilidade nas obras da Disney, e também porque uma “princesa” asiática da Disney era algo muito significativo para os descendentes americanos de asiáticos, ainda que o filme tenha defeitos.

E a presença de todos esses defeitos, somados ao vasto e rico material original tornaram Mulan um dos filmes mais adequados para adaptação em live-action, a frente de muitos outros clássicos da Disney. Mulan era um filme que poderia ser aperfeiçoado e “consertado”. E de várias formas, o novo filme teve sucesso em “atualizar” o filme original, mas em vários outros, cometeu os mesmos erros – e alguns novos. Vários desses erros nós inclusive comentamos anteriormente aqui no site com bastante detalhe, numa pesquisa mais extensa sobre os motivos do filme não ter cativado o público chinês e quem ele acaba representando melhor.

Primeiro, a diretora Niki Caro conseguiu criar um visual maravilhoso para o filme – as cores, as vistas, o figurino e a cinematografia. É sem dúvidas o remake em live-action com os visuais mais extravagantes e maravilhosos. O uso de cores lembra por vezes o trabalho do mestre cineasta chinês Zang Yimou. E a forma como Caro levou isso para um filme de ação, com referências diretas ao cinema chinês e de Hong Kong é realmente maravilhoso. É algo que eleva a história a um trabalho épico e digno do legado de Mulan, tanto nos EUA quanto na China.

O sucesso nessa parte não se repete em outras áreas. Mulan foi feito claramente com a esperança de vendê-lo diretamente para o público chinês, um dos maiores mercados do mundo, que possui influência crescente em Hollywood, mas muitas vezes de forma negativa. Por exemplo, os pontos de vista conservadores do público chinês têm sido apontados como uma das maiores razões pelas quais grandes filmes ainda não possuem representatividade LGBT, algo que levou diversas obras a serem banidas do país.

A Disney trabalhou diretamente com o Governo Chinês para filmar boa parte da obra no país, inclusive gravando cenas em Xinjiang, província em que o governo é acusado de abusar brutalmente da população muçulmana, em clara violação aos direitos humanos. E isso causou uma forte reação negativa, não apenas porque a Disney optou pelo dinheiro sobre a moralidade, mas também porque o remake não tenta ser muito mais preciso ou respeitoso à cultura chinesa. Nessa matéria do Adoro Cinema, é explicado que essas agências de Xinjiang financiam campos de concentração, algo gravíssimo em todos os possíveis aspectos, especialmente olhando os números: mais de um milhão de pessoas foram internadas em campos, de acordo com organizações de direitos humanos. 

Além de tudo, o filme é um desperdício por qualquer perspectiva. Assim como o original, o live-action tem um pé na cultura chinesa e o outro na estadunidense – sem se comprometer com nenhuma das duas. E isso só desagrada gregos e troianos, trazendo perdas simbólicas pra história.

A história do live-action é muito mais parecida com a animação de 1998 do que o esperado, apesar da Disney falar repetidamente que iria se inspirar na lenda original de Hua Mulan. Nós inclusive tentamos gerar o debate aqui no site sobre a necessidade de desapegar do Mushu no live-action e do lado nostálgico do desenho, com intenção de termos uma história que respeitaria suas origens e seus criadores originais. No final das contas, infelizmente, o filme parece ter a mesma pegada e elementos de trama que a animação, adicionando um estranho elemento místico que transforma Mulan em uma guerreira natural, quase magicamente talentosa, por ter um “excesso de chi”. Isso não é algo aceito em mulheres, e por isso Mulan é tratada como estranha para uma garota… Ela é “incrível demais”.

Não só isso, mas especialmente a parte que envolve Xianniang (cujo nome é uma variação de uma das versões da lenda de Mulan, mas essa é a única conexão com a lenda). Ela é uma “bruxa” que possui tanto “chi” que consegue lutar, se transformar em pássaros e outras coisas mais.

A atriz Gong Li trouxe grandes expectativas para o filme.

E isso em parte quer dizer que temos uma antagonista bem legal, que luta em um mundo patriarcal e machista, e que é um espelho de Mulan. Mas também temos um filme cheio de besteiras que não tem nada a ver com a cultura que promete “honrar e representar”.

Esse filme de Mulan, ainda mais do que o original, cai em tantos estereótipos sobre a China e sobre a cultura chinesa que chega a ser doloroso. E isso é explicado pelo fato de nenhum dos quatro roteiristas ser chinês.

Trad.: [Acho que você pode criar uma métrica simples para descobrir se uma história sobre asiáticos foi realmente escrita por asiáticos. Procure palavras como:

ancestrais
dever filial
chi
desonra
casamento arranjado

Quanto mais frequentemente essas palavras aparecem, menor a probabilidade do envolvimento de escritores asiáticos.]

É… poisé.

O comprometimento dos roteiristas e da diretora com a ideia de elevar Mulan, de alguma forma acabou destruindo não só a diversão e alegria do desenho, mas também o coração da lenda chinesa de Mulan.

A própria Mulan, interpretada por Yifei Liu, é tão amarrada pela necessidade de incorporar o ideal cliché e extremamente simplificado de ser “leal, corajosa e verdadeira” que praticamente não possui nenhuma personalidade. E isso é desanimador, porque um dos traços mais marcantes da Mulan amada pelos públicos ocidentais é o seu espírito.

E então… Sobre sua devoção à família, que é um fator divisor com relação ao público oriental? O filme tenta honrar isso, mas transforma essa devoção cultural em algo que ela basicamente descobre ou inventa durante o filme, o que é uma escolha. E o resultado é que o filme acaba não entregando o que nenhum dos públicos realmente queria ver na personagem.

Ainda temos aspectos positivos a ressaltar, é claro. O elenco é maravilhoso, especialmente Donnie Yen e Tsi Ma. E parte das críticas podem ser deixadas de lado ao pensar que estamos falando sobre um conto de fadas, para crianças, e que pode ser bobo. O filme tem tantas coisas desnecessárias e preguiçosas, especialmente, depois de todo o discurso de Caro e da Disney afirmando que o filme seria “leal às suas raízes”.

Por que não tentar um pouco mais ser leal e verdadeiro com relação ao material fonte e à cultura representada? Por que não contratar pessoas asiáticas para escrever o seu grande “épico da cultura asiática”?

Temos um momento no início do filme em que Mulan comenta que ao ver duas lebres correndo em um campo, você não consegue diferenciar qual é macho ou qual é fêmea. Essa é uma referência direta ao conto original de Hua Mulan, e um toque maravilhoso (assim como a participação de Ming-Na Wen, dubladora original de Mulan, ao final do filme), mas apesar disso, os pequenos toques não são o suficiente para um filme desse tamanho e importância, de diversas maneiras.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

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