Parece que todo mundo nas redes sociais decidiu dar opiniões sobre os indicados ao Oscar…
Todo mundo está falando sobre o estado geral do cinema… E sobre arte… E sobre o mundo de hoje. E tudo bem, afinal é pra isso que servem os sites como o Twitter, mas às vezes, pessoas acabam expondo opiniões que não são legais, mesmo que você seja uma lenda cultural como Stephen King. E isso prova que até mesmo lendas podem estar erradas às vezes.
O autor resolveu entrar na discussão sobre a falta de diversidade nos Oscars, e em tudo mais. Nós já falamos bastante sobre o quão desapontante é saber que a Academia não parece se importar com as mulheres, com a diversidade entre diretores, e sabe, sobre qualquer coisa relevante para todos nós no mundo em que vivemos. O autor de O Iluminado e A Coisa resolveu levar as coisas para outra direção.
As a writer, I am allowed to nominate in just 3 categories: Best Picture, Best Adapted Screenplay, and Best Original Screenplay. For me, the diversity issue–as it applies to individual actors and directors, anyway–did not come up. That said…
— Stephen King (@StephenKing) January 14, 2020
[Como escritor, eu só posso ser nomeado em três categorias: Melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor roteiro original. Para mim, a questão da diversidade – como somente se aplica a atores individuais e diretores, de qualquer forma – não surgiu. Dito isso…]
…I would never consider diversity in matters of art. Only quality. It seems to me that to do otherwise would be wrong.
— Stephen King (@StephenKing) January 14, 2020
[… eu nunca levaria em consideração a diversidade quando a arte estiver em questão. Apenas a qualidade. Parece para mim que fazer de outra forma seria errado.]
Então vamos falar sobre o porquê disto estar errado.
Essa fala é o epitomo do privilégio masculino branco. King está acostumado a criar e consumir histórias para e sobre pessoas como ele: hétero, branco, homem e cisgênero. E isso é o privilégio: ter a opção de seguir com sua vida na menor escala de dificuldade até chegar a (muitas vezes correta) ideia de que tudo é sobre e para você.
Não são apenas as histórias de pessoas privilegiadas que recebem mais tempo de tela e atenção, afinal. É o fato de que esses filmes, livros e séries, feitos por e para caras brancos, velhos, heterossexuais, são reconhecidos pela “sociedade” e “cultura” – como demonstrado por instituições como a Academia – como “mais merecedores” e de “qualidade superior” do que as histórias dos grupos marginalizados. É por isso que “qualidade” e “meritocracia” aparecem tanto na linguagem das pessoas privilegiadas:
Elas estão acostumadas não apenas com a arte ser sobre elas, mas também estão confortáveis em uma sociedade que define essas narrativas privilegiadas como o “ápice da boa arte”.
Stephen King tem muita sorte de que ele apenas vê a “qualidade” na arte. Para ele, um homem cuja maior parte da arte que produz é financiada e apoiada, isso é fácil. Não é tão fácil para aqueles que não compartilham de tais privilégios. Nós podemos gostar de filmes que não são feitos para nós – porque, é claro, filmes sobre homens brancos e héteros são a experiência humana padrão (certo?), mas nós lutamos para ser os sujeitos, e até mesmo os autores, não apenas expectadores. Quando nós vemos nossas próprias histórias, aquela arte que pode nos levar além e nos mudar, isso também pode ser uma arte melhor do que aquilo que assumimos ser “qualidade”.
A diversidade faz a arte melhor. Contar histórias únicas, empolgantes e inexploradas é essencial para manter a arte interessante, vital e relevante.
Sim, nós podemos voltar ao mesmo poço de sofrimento branco e masculino e encontrar trabalhos incríveis que possam ser reconhecidos, mas existem tantos outros trabalhos que não podemos ver quando não oferecemos o apoio e buscamos a diversidade na arte.
Nós precisamos incluir a diversidade em nosso julgamento, ou então nunca mudaremos o que é visto como “bom”.
Ao olhar apenas para a “qualidade”, pessoas como King ignoram muita coisa. Elas inconscientemente perpetuam os padrões da sociedade que definem qualidade de uma forma estreita e privilegiada. Stephen King não está sendo racista ou machista ao dizer que não pensa em diversidade ao medir “a qualidade da arte”, mas está reproduzindo e reforçando as construções sociais que mantém as pessoas marginalizadas de fora.
The most important thing we can do as artists and creative people is make sure everyone has the same fair shot, regardless of sex, color, or orientation. Right now such people are badly under-represented, and not only in the arts.
— Stephen King (@StephenKing) January 14, 2020
[A coisa mais importante que podemos fazer como artistas e pessoas criativas é ter a certeza de que todos têm as mesmas chances, independente de sexo, cor ou orientação. Agora, essas pessoas estão terrivelmente sub-representadas, e não apenas nas artes.]
Novamente, a ideia de que “todos tenham as mesmas chances” é um ponto de vista privilegiado, porque nem todo mundo pode começar do mesmo ponto.
A sociedade e a cultura estão posicionadas contra o sucesso das pessoas marginalizadas – seja uma mulher, uma pessoa de etnia ou gênero diverso, ou pessoas queer; ou na verdade, qualquer um fora daquele estreitíssimo padrão. Nós raramente vemos nossas histórias sendo contadas, e de forma ainda mais rara, podemos ser nós a contá-las, porque é muito mais fácil para uma pessoa privilegiada conseguir o investimento, atenção, premiações e sucesso.
King está absolutamente certo quando afirma o seguinte:
You can't win awards if you're shut out of the game.
— Stephen King (@StephenKing) January 14, 2020
[Você não pode receber premiações se é forçado para fora do jogo.]
Fazer com que pessoas participem do jogo significa que as pessoas privilegiadas devem ceder espaço, não apenas na mesa, mas em seus pontos de vista sobre o que “vale como arte de qualidade” e que devem incluir isso em seu cálculo.
Se uma obra de arte não inclui sequer uma pitada de diversidade hoje em dia, essa arte está falhando e isso é algo que deve influenciar negativamente sua “qualidade”. A incapacidade de um criador em valorizar pontos de vista e histórias fora de sua própria experiência é uma falha. A perpetuação da violência e angústia masculina, branca e hétero como o epitomo do prestígio é uma falha de criatividade e percepção. E isso é importante.
Tornar o mundo um lugar melhor, com arte melhor que sirva e represente a todas as pessoas que trabalharam nela. Isso exige que todos nós reexaminemos nossos privilégios e preconceitos, e olhemos para a arte não apenas em termos de “qualidade”, mas em como ela alcança o sucesso ou falha em razão de sua diversidade. Apenas com esse olhar duro é que podemos avaliar, premiar e aclamar aqueles que ofereçam as mudanças que precisamos para que “todos tenham uma chance no jogo”.
Stephen King deveria se importar com a diversidade na arte, assim como todos aqueles que votam na Academia deveriam, especialmente os homens brancos privilegiados.
É desconfortável olhar para seus próprios preconceitos e privilégios, mas isso é algo essencial se queremos uma arte melhor e um mundo mais justo no futuro.
Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.
Créditos de imagem: Marc Andrew Deley/Getty Images
Débora é musicista, professora de artes, pesquisadora de sociologia de gênero. Autoproclamada otaku-não-fedida e gamer casual. A alcunha de Liao veio de um site aleatório de geração de nomes japoneses (Liao é chinês, mas tudo bem).