Uma história de como a representatividade feminina começou na Sega.

Em 1993, quando a Sega of America entrou em contato, Michealene Cristini Risley (escritora e diretora premiada, ativista de direitos humanos) já sentia uma crescente preocupação com a falta de representação feminina nos jogos e animações. “Eu passei um bom tempo em L.A. e Hollywood”, afirmou, se referindo ao seu trabalho na produção e licenciamento pela unidade de animação da Marvel.

Imagem: iampractigal.com

E então eu já tinha percebido, particularmente enquanto trabalhava na televisão infantil, que não havia uma grande quantidade de papéis para (atrizes e personagens) mulheres.

Os papéis que ela via tinham uma forte tendência a serem insignificantes. E o mundo dos jogos que ela ousou adentrar parecia ainda pior. Havia personagens femininas simbólicas, como a Ms. Pac-Man, e uma ou outra donzela em perigo – uma princesa ou namorada que precisa ser salva – e fora isso, praticamente nada.

Mas ela reconheceu que como chefe da nova Divisão de Entretenimento e Produtos para Consumo da Sega, ela poderia fazer algo para mudar isso. Empoderada pelos esforços agressivos da Sega para recrutá-la (não apenas enviando caixas e mais caixas de jogos, mas também oferecendo pagar pela coordenação de seu casamento, entre outras coisas), Risley aceitou a oferta da empresa. Pouco tempo depois, ela solicitou autorização para participar de um programa de estudo de duas semanas em Stanford, cujo tema era estudos de mulher e gênero. “Foi uma experiência transformadora para mim”, ela afirmou.

Risley então decidiu que tentaria usar a sua vantagem em seu novo papel na Sega para reduzir o abismo na representação de gênero nos jogos e animação.

“O mundo não é, sabe, 2% mulheres e 98% homens. E a crescente popularização dos jogos, especialmente, estava criando uma divisão cultural entre os gêneros. Então isso era algo realmente importante”

A Sega tinha o objetivo de ampliar a audiência para os jogos em seu console Genesis – ultrapassando a barreira tradicional de público, que naquele momento era de garotos entre 9 e 14 anos, em busca de um mercado que atingisse adolescentes e adultos. Mas Risley entendia que as garotas deveriam fazer parte desta expansão também. Mas ela sabia que precisaria antes disso, demonstrar para seus supervisores que a sub-representação feminina era um problema. E ela precisava de uma oportunidade.

A única forma que eu poderia conseguir a atenção deles era transformar isso em dinheiro, então eu apresentei dessa forma: ‘Nós estamos deixando esse gigantesco mercado sobre a mesa. E se não começarmos a criar conteúdo para garotas, em breve alguém o fará’.

Uma força-tarefa feminina

O CEO da Sega of America na época, Tom Kalinske, também viu o potencial lucrativo em produzir algo direcionado para garotas. “Meu plano de fundo eram os brinquedos”, afirmou. “Eu surgi na Mattel e passei metade da minha vida trabalhando com Barbies”.

Ele estava lá quando analistas, compradores varejistas e mesmo a própria equipe de vendas da Mattel acreditava que “a Barbie já era”. No momento em que ele deixou a empresa, subindo de gerente de produtos até a posição de CEO, Barbie havia se tornado um negócio bilionário. Ele se lembra que a chave para este sucesso foi tentar entender – como foi explicado a ele pela co-fundadora da Mattel – que Barbie permitia às garotas ser o que elas quisessem ser.

E assim também poderia um vídeo game. Kalinske percebeu isso após a apresentação de Risley. E a maior parte da transmissão desta mensagem exigiria propaganda.

A Sega tinha de mostrar garotas jogando videogames. E com isso, eles esperavam que as garotas recebessem a ideia de que podiam fazer tudo que um garoto podia.

Com o apoio de Kalinske, Risley reuniu uma força-tarefa composta por mulheres para ajudá-la nesta empreitada: Diane Fornasier, vice-presidente de marketing; Cynthia Modders, diretora de licenciamento; Cindy Hardgrave, produtora-executiva; e Lydia Gable, gerente de marketing de produtos (e posteriormente, vice-presidente de marketing).

A Força-Tarefa das Garotas da Sega tinha como objetivo expandir a audiência feminina da Sega por meio de quaisquer iniciativas – internas ou externas – que pudessem ser imaginadas.

Risley afirmou:

Nós realmente nos sentamos e dissemos, ‘Ok, o que podemos fazer diferente? Como devemos começar isso?’ E então foi quando começamos a trabalhar com a agência de propaganda, tentando descobrir como poderíamos trazer as garotas para os jogos.

Marketing direcionado para garotas

A Goodby, Berlin & Silverstein era uma agência com forte ligação com a Sega. Um ano antes da formação da força-tarefa, a empresa havia criado o Sega Scream, que se tornou parte crucial da estratégia de marketing e fortalecimento da marca nos Estados Unidos. A Sega contratou a agência para criar um comercial de TV direcionado a atrair mais garotas para jogarem os videogames da franquia Sonic. Daí, Risley afirma que a equipe entrou em conflito com um dos executivos sênior.

Queríamos mostrar que garotas se interessavam por Sonic, e eles insistiam que a garota deveria montar em uma ‘banana-bike’ (bicicleta com assento em formato de banana). E eu disse, ‘não, garotas não gostam de banana-bikes’.

Risley sentia que a propaganda teria que ser autêntica.

Se o objetivo era demonstrar que era normal a ideia de que jogos não eram apenas para garotos, ela tinha que mostrar garotas comuns – pessoas que as garotas assistiriam de casa e se reconhecessem, e não uma mera piada ou fantasia masculina.

“Então, tivemos que prestar atenção em cada pequena nuance”, afirmou.

Eram coisas pequenas, de acordo com Kalinske. “Coisas que homens não pensam a respeito. Mas uma garota olhando diria ‘Oh, isso não vai dar certo’, e nós sequer teríamos percebido”.

Convidar garotas para entrar para o público de jogos – ou qualquer outra indústria dominada por homens – exigiria uma mudança no pensamento. Homens dominavam toda a cadeia de produção.

Eles eram maioria em todos os papéis com poder de decisão, seja no planejamento, vendas, marketing ou desenvolvimento. E durante toda a sua carreira, antes ou depois da Sega, Risley percebeu como isso levava a pressuposições equivocadas.

Ela relata uma história ocorrida alguns anos mais tarde, após deixar a indústria dos jogos como um exemplo:

Eu desenvolvi a primeira linha de maternidade assinada pela Adidas. E não havia ninguém com experiência em maternidade ali. Mas quando eu ia até o cara das vendas na loja, ele sempre dizia a mesma coisa: ‘não, minha esposa não precisa desse produto, ela prefere usar as minhas roupas’. E então havia essa ideia de que as mulheres eram como os homens. E eu via isso em todo o lugar. Eu via nos brinquedos, na televisão, nos jogos.

Diferenças de Gênero

Uma vez formada, a Força Tarefa de Garotas da Sega pesquisou a fundo tentando entender melhor como as garotas jogavam. Risley detalha:

Nós nunca havíamos perguntado para as garotas o que elas queriam antes… Nós sempre ficávamos tipo ‘Ah, elas vão gostar das mesmas coisas’, mas isso não era verdade.

E a pesquisa revelou o que hoje já é um conhecimento mais difuso:

Garotas gostavam de jogos com personagens femininas fortes, inteligentes e inventivas. E também demonstrou que garotas tendem a jogar de forma diferente dos garotos. Garotas tem uma preferência maior por jogos cooperativos e não competitivos.

Sobre isso, Risley afirmava o seguinte:

Garotas possuem um nervo auditivo mais forte, e então tendem a gostar mais de pequenos [movimentos precisos, como aqueles necessários para jogar Tetris, Mario e Pac-Man]. Então existem diversas coisas que são bastante diferentes do que estávamos criando nos jogos. Garotas querem jogos de tiro acima de tudo? Não, elas preferem puzzles. Elas gostam de usar o cérebro.

Risley complementa que a coisa mais importante era ter um ótimo jogo. Muitas das melhores franquias podiam apelar para ambos os gêneros – como Sonic, especialmente após a adição de Sally e Tails, ou jogos como Aladdin.

Jogos recheados de violência gráfica não eram apelativos para as garotas, independente da qualidade do jogo, apesar de certos jogos competitivos terem sido bem aceitos um pouco melhor – Virtua Fighter se tornou uma franquia com público dos dois gêneros.

Com essa pesquisa em mãos, a Sega tinha o que precisava para seguir em frente. A empresa separou uma parte de seu orçamento de publicidade para mergulhar nas águas do desenvolvimento de jogos “para garotas” com três títulos: Crystal’s Pony Tale, Baby Boom e The Berenstain Bears’ Camping Adventure.

O segundo era um jogo de puzzle, cujo objetivo era reunir centenas de bebês fujões de volta a uma creche, foi cancelado de cara. “Não era divertido com o controle direcional”, afirmou o designer Ed Annunziata, explicando que o jogo foi arquivado. Os outros dois, por sua vez, acabaram recebendo a etiqueta do Sega Club infantil – ambos eram plataformers simples, coloridos e direcionados a um público bastante jovem. Mas nada de muito grande surgiu de nenhum deles no mercado.

A realidade é que jogos femininos continuaram sendo uma preocupação pequena demais para gerar algum esforço por parte da Sega. “A Sega nunca investiu muito nos jogos para garotas”, afirmou Cindy Hardgrave, membro da força-tarefa. “E nunca houve um grande esforço para direcionar ao público feminino”. Mesmo com uma equipe de executivas sênior dirigindo a Sega, o verdadeiro progresso veio muito lentamente.

Dores de Cabeça

Em 1993, quando a Força-Tarefa de Garotas da Sega começou a trabalhar, a Mattel ainda estava anos distante de descobrir como efetivamente adaptar os seus brinquedos para o entretenimento digital. O movimento por jogos para garotas, da mesma forma, ainda estava por surgir com seus jogos concentrados em garotas, e equipes femininas de desenvolvimento apoiadas por profundas pesquisas de mercado.

Não havia exemplos de sucesso para provar que os jogos poderiam ser feitos tanto para garotas quanto garotos. Ninguém havia levantado esses dados. A Força-Tarefa teve de começar do zero.

“Tirando poucas pessoas como Tom Kalinske e Joe Miller, que realmente entenderam e lideraram o design do produto, [nós enfrentamos considerável] ceticismo. Absoluto ceticismo”, afirmou Risley.

Por vezes ela teve que lidar com o enfrentamento por outras pessoas – até mesmo mulheres – que se sentiam desconfortáveis com uma mulher liderando ou enfrentando os padrões. “Eu lembro que minha mãe estava na cidade, e ela foi tipo ‘Mike, olha! Você está na primeira página da seção de negócios (do The San Francisco Chronicle)’. E eu estava apavorada, porque não queria me destacar, ainda que tivesse sido a responsável por iniciar a Força-Tarefa, e a pessoa que selecionou e reuniu o grupo”.

Kalinske lembra do ceticismo pelo lado japonês da empresa. “Quando falávamos sobre isso no Japão, eles não entendiam nada. Eles não compravam a ideia. Era como se isso fosse mais um negócio maluco de americanos, e eles diziam ‘vá em frente e faça, mas não esperamos que tenham sucesso com isso’. Francamente, eles se sentiam dessa maneira sobre várias coisas que tentávamos. E graças a deus, na maior parte das vezes estávamos certos”.

A equipe de Sonic foi uma das mais receptivas à ideia de fazer jogos mais acessíveis aos públicos não tradicionais, de acordo com Pamela Kelly, gerente de marketing da Sega of America entre os anos de 1992 e 1995. Mas boa parte dos parceiros de desenvolvimento resistiu aos esforços para fazer os jogos mais apelativos para garotas. “Eu estava trabalhando com a Disney e a Virgin Interactive no jogo de Aladdin e me lembro de ouvir os produtores da Disney afirmando ‘Nós vamos fazer esse ser o jogo mais difícil de todos os tempos!’. E meu deus, como eu tive que lutar para dizer que esse era uma das ideias mais bobas que já tinha ouvido”, relata Pamela. E continuou:

Vejam quem é o público. Vão para os cinemas e vejam quem está assistindo ao filme, quem está vendo os vídeos. Vocês não podem alienar essas crianças, porque elas são aquelas que querem jogar.

Kelly saiu vencedora nessa disputa e trabalhou com o programador David Perry em tornar o jogo mais acessível e bem-humorado. Mas ela ainda se lembra da atitude dos produtores da Disney ser um problema comum, especialmente com jogos licenciados. “Isso realmente vinha daquele pensamento de ‘eu amo jogos, vou fazer um pra mim’”. Quando na verdade, o jogo deveria ser feito para os fãs da franquia – cuja maior parte era composta por garotinhos e garotinhas.

Mudando o padrão

Trazer garotas para o mundo dos jogos exigiu mais do que simplesmente “fazer jogos que apelem para elas”. Kelly se lembra que as garotas naquela época eram desencorajadas a se dedicar a jogos ou qualquer tipo de tecnologia. Mesmo quando uma garota começava a jogar, explica Kelly, citando uma pesquisa etnológica realizada posteriormente pela Mattel, “quando um garoto entrava na sala, ela tinha que deixá-lo jogar”. Mas segundo ela, o pior era que:

Isso era tratado como fato conhecido, que garotas não brincavam com computadores e não jogavam videogames. Era isso que os revendedores pensavam.

Kalinske também afirma que mesmo quando confrontadas com dados concretos, muitas pessoas ainda rejeitavam a ideia de que garotas poderiam estar interessadas em videogames. Durante as audiências de 93 e 94 do congresso americano acerca de violência nos jogos, por exemplo, ele tentou apontar que:

a) a idade média do jogador naquela época era de 21 anos, o que significava que adultos também jogavam; e

b) milhões de mulheres e garotas jogavam os jogos da Sega.

Mas quando eu afirmei isso, ninguém acreditou. Era uma mensagem muito difícil de ser comprada por qualquer um, porque eles tinham aquela percepção antiga do que era a indústria dos videogames.

Nem Risley, Kalinske ou Kelly pensam que a Sega sequer chegou perto de resolver o problema da representação feminina nos jogos. Mas todos apontaram seu trabalho nesta época como um passo em direção a tentar mudar a percepção de “o que” e “para quem” deveriam ser os jogos.

Apesar de ser impossível medir o impacto causado pela Força-Tarefa, pesquisas de mercado apontam um aumento massivo no público feminino do console Sega Genesis. O grupo disparou de 3% em 1993 para 20% em 1995, quando Risley deixou a empresa.

“Nós abrimos as comportas”, brincou Risley.

E eu gosto de pensar que quando você começa a falar sobre isso, sabe, as pessoas começam a mudar. Temos muitas pessoas que começaram a dizer, espere, vamos ver como podemos ampliar esse público.

Os anos seguintes viram o florescimento dos esforços para desenvolver jogos para garotas, tanto de pequenos estúdios quanto grandes empresas como Disney e Mattel. A Mattel chegou a contratar Pamela Kelly, que fundou a sua divisão de entretenimento interativo, responsável por décadas de pesquisa interna de dados sobre padrões masculinos e femininos de brincar, que ajudaram a desenvolver Barbie Fashion Designer, primeiro jogo feminino a vender um milhão de cópias.

Por trás dos números, Risley lembra ter recebido diversas cartas de agradecimento de garotas felizes por terem encontrado personagens femininas. “Elas tinham aquele sentimento de pertencimento. Eu acho que isso fez com que elas sentissem que podiam jogar”.

Kalinske sente algo similar: “Eu ouvi de muitas pessoas através destes anos sobre como os nossos esforços ajudaram a introduzi-las (aos videogames, tornando) jogar aceitável para elas. Elas são gratas por isso e isso me faz me sentir muito bem”.


Texto traduzido e adaptado da Polygon.

Leituras complementares:

Compartilhe: