Mesmo grandes fãs podem ter pouco a defender depois disso.

O argumento de que devemos saber separar o artista de sua obra e não deixar as suas ações comprometerem o nosso julgamento tem desafiado cada vez mais a nossa tolerância para atos de violência e expressões de ódio disseminadas por artistas e criadores que um dia amamos.

E quando o assunto é a nova onda de tweets transfóbicos (com um manifesto no final como a cereja do bolo de ódio) de JK Rowling, autora de Harry Potter, forçaram mulheres trans, fãs da franquia, e até mesmo parte do elenco dos filmes (como os próprios atores que interpretaram os protagonistas, Daniel Radcliffe, Rupert Grint e Emma Watson) a se posicionar contra os ataques direcionados à comunidade trans, apontando a crescente aproximação da autora aos mais virulentos grupos de “TERFs” (feministas radicais trans-excludentes) como uma traição aos seus fãs.

O conservadorismo de Rowling e a sua ignorância com relação a assuntos de sexo e gênero, infelizmente, não se limita ao seu desnecessário uso das redes sociais para destilar ódio e discriminação contra a comunidade trans. Isso também está presente pelos sete volumes de sua série mais conhecida e mesmo nas histórias paralelas.

Rowling cria uma narrativa com papéis de gênero rigidamente heteronormativos para todos seus personagens. Além, é claro, da infame falta de diversidade e a patologização das expressões não-normativas de sexualidade.

Mesmo grandes fãs podem ter pouco a defender depois disso.

Boa parte do fandom de Harry Potter possui uma conexão profundamente pessoal com as obras, e isso é inegável. Leitura constante durante nossos anos de formação tornaram Harry Potter um símbolo cultural para muitos dos jovens nascidos nos anos 1980 e 1990. Quantos de nós não acamparam na porta da livraria local aguardando o lançamento de um dos livros? Quantos de nós não fizeram o mesmo nos cinemas e locadoras, além de colecionar todo tipo de item relacionado à franquia?

Ainda que em algum momento tenhamos largado os livros de lado em busca de uma literatura mais “séria” ou “adulta”, muitos de nós em algum momento acaba retornando à obra, ainda que só por nostalgia.

A fantasia nos mantém conectados ao otimismo da infância, à inocência e à imaginação. Coisas que acabam por sumir quando lidamos com a perda de pessoas próximas ou ingressamos na difícil vida adulta.

Mesmo hoje, ainda é possível mergulhar na fantasia e se divertir com as histórias, que são complexas e existem em um mundo vívido. Porém, explorar essas obras como uma pessoa adulta, especialmente feminista e/ou queer, pode deixar um gosto um pouco amargo na boca. Um pouco de maturidade é necessário para entender o conservadorismo presente na obra.

Os papéis de gênero são traçados de forma tão rígida no mundo de Harry Potter que mesmo bruxas inteligentes, independentes e poderosas como Gina e Hermione apenas demonstram interesse em poções do amor ao entrarem na loja dos gêmeos Weasley. A Ordem da Fênix possui apenas três mulheres, e elas nunca são encarregadas de tomar decisões, com Molly Weasley sendo apresentada como pouco mais do que uma mãe substituta para Harry.

A única mulher que possui algum posicionamento político em todo o mundo da magia é a cara-de-sapo, amante de gatos, viciada em rosa, maníaca por controle e sedenta por poder, Dolores Umbridge. Sim, justo ela! Os livros são repletos de exemplos, mas apenas duas personagens são o suficiente para demonstrar qual o papel da mulher no mundo de JK Rowling, seja no mundo dos trouxas ou dos bruxos.

Fleur Delacour, a bela competidora francesa do torneio tribruxo, foi a única mulher escolhida para o torneio. Ela era de uma escola exclusivamente feminina (de acordo com os filmes), em que não haveria qualquer competidor masculino. Quando ela começa a se preparar para o casamento com Gui Weasley, ela é transformada em uma vazia “noivazilla”, odiada pelo clã Weasley por seu “ar de superior” e pretensões. E no final da série, ela é reduzida a uma imagem do que um dia alguém imaginou ser uma “donzela”: uma sorridente e dócil dona de casa, incapaz de enfrentar a masculinidade proeminente de seu marido.

Do outro lado do espectro está a universalmente odiada Bellatrix Lestrange. Interpretada maravilhosamente pela incrível Helena Bonham Carter, ela é a única personagem que demonstra sinais de uma sexualidade não reprimida. E por isso, e também por sua devoção obsessiva por Lord Voldemort, ela é apresentada como nada além de uma criminosa maluca. A suspeita de que eles teriam se envolvido sexualmente é confirmada em A Criança Amaldiçoada, em que, é claro, o produto do relacionamento é considerado algo abominável.

A fidelidade de Lestrange com o mal e sua morte pelas mãos da principal “figura materna” da história, Molly Weasley, em uma lição sobre os perigos do poder feminino e descontrole sexual.

E Rowling não faz um trabalho melhor com a liberdade dos papéis de gênero com seus personagens masculinos. Novamente, são muitos os exemplos sobre como os personagens masculinos reforçam papéis de gênero heteronormativos e patriarcais, mas entre os mais claros estão o próprio Harry e também Ron.

Os dois constantemente tratam mal suas amigas mulheres e demais colegas: eles humilham Ginny em um claro caso de “slut shaming”, e Hermione, além de ter de salvá-los o tempo todo de sua própria incapacidade, ainda faz o dever de casa deles.

De qualquer forma, é a dinâmica Dumbledore/Grindelwald que é a mais problemática. Dumbledore foi lançado para fora do armário pela própria autora ao ser questionada se o diretor de Hogwarts já havia se apaixonado. Ela respondeu que sempre havia pensado em Dumbledore como gay, como se ser gay e experimentar amor fossem condições excludentes.

Manifestações posteriores sobre o assunto revelaram que o jovem Dumbledore possuía uma profunda afeição a Grindelwald, que acabou em uma disputa de amantes que causou a morte acidental de sua irmã. Dumbledore, apavorado pelo trágico destino causado por seu amor por Grindelwald, se torna celibato pelo resto da vida. Grindelwald, por outro lado, é apresentado em Animais Fantásticos como um vilão metamorfo, predatório e queer que domina e destrói o inocente e reprimido Credence.

Talvez ainda mais desapontador seja que, em uma série que exalta a justiça sobre o autoritarismo, em que a luta do bem contra o mal, que acaba sendo uma disputa pelo poder, acabe sendo decidida pelo homem que é forte o bastante para vencer a batalha.

Qualquer discussão sobre gênero e sexualidade em Harry Potter acaba, é claro, sendo limitada pelo fato que existe praticamente zero diversidade em relação a gênero ou sexualidade em toda a obra. Sem falar sobre a preguiçosa e problemática utilização de estereótipos étnicos e falta de diversidade étnica dos personagens. O mundo da magia de Rowling é praticamente um mundo de pessoas brancas, cis e heterossexuais.

Todas essas falhas autorais talvez fossem possíveis de superar – afinal, poderia ser apenas mais um exemplo de viés inconsciente de uma mulher branca, europeia, cis e presumivelmente hétero – se não fosse pelo fato de seus fãs mais dedicados a cobrarem sobre isso há anos tendo, inclusive, tentado por conta própria afastar a homogeneidade e heteronormatividade presente no mundo dos bruxos por todo esse tempo.

É verdade que expressões de diversidade étnica, sexual e de gênero estão se tornando cada vez mais presentes e celebradas, tanto dentro quanto fora da literatura. E que o mundo mágico de Rowling, habitado quase exclusivamente por pessoas brancas, cis e heterossexuais, está se tornando a cada dia menos relevante em nossa realidade atual.

Além disso, a insistência da autora em usar seu incrível privilégio e imenso alcance de suas redes sociais para espalhar ódio e discriminação, especialmente, em uma época em que o mundo está mergulhado em uma pandemia e que as pessoas se levantam para enfrentar a violência racista, demonstra que ela é na verdade incapaz de promover o tipo de compreensão e respeito mútuo que os seus livros um dia foram exaltados por fazer.


Texto traduzido do TheMarySue.

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