Discutindo racismo e representatividade na TV e no cinema 

João Pedro, 14 anos;  Agatha, 8 anos, entre tantos outros brasileiros;  George Floyd, 46 anos;  Eric Garner, 43 anos, esses são só alguns nomes entre as milhares de vidas tiradas pela polícia, sentenciadas à morte por uma política genocida que tem como alvo pessoas negras.

A morte de George Floyd em Minneapolis nos Estados Unidos, que muito se assemelha a de Garner, asfixiado pela polícia mesmo depois de ter sido rendido, fez com que as pessoas tomassem as  ruas para manifestar contra a violência policial e o racismo. O mesmo movimento anda ocorrendo no Brasil, e vale notar que temos um número absurdo de assassinatos cometidos por policias que envolvem a população negra.

E qual o papel o audiovisual tem nisso?  Falando sobre comunicação, a televisão e o cinema são os meios mais influentes e amplos na propagação de ideologias, responsáveis por ditar diversos tipos de comportamentos sociais.  Como por exemplo estudos que comprovam que a predação de tubarões aumentou muito após o clássico filme de Steven Spielberg. 

A partir do momento que se entendeu que a arte cinematográfica poderia ser usada como propaganda política (e sim, tudo é política é preciso sempre ter isso em mente) e não só como entretenimento, como tinha sido no início, ela foi usada ostensivamente, principalmente no período entre guerras (Segunda Guerra Mundia e Guerra Fria).

Rocky (1977) é clara a mensagem da luta norte-americana vs comunismo e a força da União Soviética. E dessas representações ideológicas que começam a se formar a estereotipização. Como representar aquilo que você não gosta e não concorda? De forma estereotipada! Para que o público se antagonize a isso. E no que concerne a questão de representação não-branca, esse caminho é mais tortuoso ainda. 

A história do cinema e da televisão vai muito em contra mão da luta anti-racista, na verdade as duas plataformas são responsáveis por propagar ideias racistas e vários  estereótipos, que já existiam, mas foram intensificados e difundidos através de suas obras. 

Desde sua criação, em 1885, o cinema serviu ao entretenimento de pessoas brancas. Os filmes eram feitos por brancos, com brancos e para brancos, e personagens negros pouco apareciam, quando sim, eram rasos, coadjuvantes e inimigo ou submisso ao personagem branco. 

Ou pior ainda, eram representados por atores brancos que se pintavam de preto para representar esses papéis. Todos ridicularizavam pessoas negras, aumentando o tamanho do lábio, e fazendo performances caricatas e estereotipadas. Como Buck, um personagem negro ameaçador que assediava mulheres brancas.

O blackface foi usado em filmes famosos como O Cantor de Jazz (1927) e O Nascimento de Uma Nação (1915)

Nascimento de uma Nação foi um dos primeiros filmes a migrarem do entretenimento puro para a propagação de mensagem por trás da “diversão”. 

O filme, que fala sobre “o problemas que surgem  quando negros alcançaram a igualdade de direitos dos brancos” foi criado para propagar ideias de supremacia branca e está diretamente ligado com a história da violência contra afro-americanos. A história que celebra o poder da Ku Klux Klan, foi responsável por reviver o grupo, que praticamente já havia desaparecido na época. Criando logo em seguida do seu lançamento, uma onda de ataques racistas.  Foi o diretor, D.W.Griffith quem criou um maior símbolo usado pela Klan, a cruz em chamas, pois achava a estética bonita visualmente. 

Além, claro, de propagar estereótipos que perduram até hoje, dentro de Hollywood, e no imaginário das pessoas. Os personagens negros ali representados (feitos por brancos) foram todos sexualizados, animalizados, tidos como seres primitivos e violentos.

 “Toda imagem que vemos dos negros é uma imagem degradada e bruta, canibalista, animalística, a imagem do homem afro-americano” – trecho do documentário 13ª Emenda

Isso reflete diretamente nos protestos que estão ocorrendo agora nos Estados Unidos, a violência policial contra afro-americanos é  sintomática, do ódio ao corpo negro desde a escravidão, da ideia supremacista de que vidas brancas importam mais.

Por muitas décadas ainda, o mercado continuou sendo dominado por brancos, dentro e fora da tela, e produções com atores negros continuaram sendo escassas e com personagens pouco desenvolvidos. Em sua maioria são personagens humildes, como: um zelador, um prisioneiro, mendigo, empregada, babá, cozinheira, faxineiro, entre outros, que não possuem uma história própria, apenas têm a função de resolver os problemas do personagem branco. 

Ou estereotipados, como por exemplo  “negra brava”, que seria uma personagem expansiva e cheia de atitude, ou “negra promíscua, negra barraqueira e negra perua”. Além disso, o uso frequente desse estereótipo constrói uma visão de que mulheres negras não podem ser tímidas, reservadas e introspectivas, por exemplo.

As empregadas do cinema e da TV atuam como um Negro Mágico ou Melhor Amiga da Protagonista, sempre cuidando e guiando os personagens brancos.

Spike Lee fala sobre o “Negro Mágico”, ele usou o termo durante uma discussão sobre o filme À Espera de um Milagre para falar de um personagem sábio e místico que salva o protagonista branco:

Apesar da intenção por trás do personagem do Negro Mágico ser essencialmente boa e definitivamente uma melhora se comparado aos clássicos estereótipos racistas do Negro Bandido/Preguiçoso/Malandro, ainda assim ele é um problema.[…] O Negro Mágico reforça a ideia de que pessoas negras são uma classe diferente de seres humanos […] como é uma classe que existe unicamente em função dos seres humanos que realmente têm valor: os brancos (afinal, são eles os heróis protagonistas, com problemas, ambições, angústias e desejos próprios). 

Para o publicitário Ruggeron Reis a representação permeia entre várias coisas, pode ser algo negativo, como em O Nascimento de Uma Nação, ou algo positivo “Esse é o primeiro combate no audiovisual, o combate aos estereótipos”

Green Book – ganhador do Oscar 2019 que traz os estereótipos do negro mágico e branco salvador

Vale ressaltar que quando falamos sobre falta de representação, todas as pessoas não-brancas estão incluídas. Em um estudo realizado pela Escola Annenberg de Comunicação e Jornalismo, da Universidade do Sul da Califórnia (USC), 700 filmes campeões de bilheteria lançados entre 2007 e 2014 – exceto 2011 – foram analisados e como resultado tiveram que 73% de todos os personagens no cinema são brancos, enquanto personagens negros representaram 12,5% deles.  Esse número fica ainda menor quando olhamos para latinos, com 4,9%, asiáticos com 5,3%,Oriente Médio com 2,9 e menos de 1% de  índios nativos americanos.

Não é preciso ir muito longe para entender a falta de representação, pegando obras famosas da ficção já é possível fazer esse panorama, O Senhor dos Anéis, Breaking Bad, Twin Peaks,The Office, Star Wars, Star Trek, são produções de grande sucesso e majoritariamente com pessoas brancas.

É o que aponta  Kelvin Nunes, quando comenta sobre as coisas que assiste:

“Se você for ver, só tem personagem branco. How I met Your Mother, 5 amigos brancos, Friends, 6 amigos brancos, The Big Bang Theory, 6 amigos brancos e um indiano (super estereotipado).  Não tem nenhum personagem negro”.

A analista de vendas Ericka Martins também aponta que há uma escassez na representação de personagens negros dentro da tela:

 “Não me sinto representada, embora tenham séries elas não são nem um décimo do tanto de série que mostram a vida das pessoas brancas, e um mundo diferente do nosso, uma realidade diferente. Muito do que tem também é a história de pessoas brancas sendo feita por pessoas negras, não é uma realidade verídica do que as pessoas negras passam”. 

Star Trek  é um bom exemplo que de não adianta só ter um personagem negro, mas é preciso que ele tenha uma narrativa. Apesar de Nichelle Nichols  ter sido a primeira mulher negra a aparecer na TV com papel de destaque e ter sido extremamente relevante,  o tempo de tela e quantidade de falas que Uhura tem, se comparado com os outros personagens, é absurdamente inferior.

Outro problema é criar o personagem que tem como única função mostrar o racismo. Em seu texto Gabi Costa fala sobre isso: 

Esse fato é reflexo de um processo histórico de apagamento da realidade da população negra. Por essa lógica, antes do período escravocrata não houve história a ser contada, e depois fizeram dela a nossa única referência, retratando negras e negros unicamente em filmes sobre o assunto – inclusive, sempre com a presença de um homem branco pronto para salvá-los.

E Ruggeron complementa: 

“Essa é uma falta grave. Da mesma forma que acho que pessoas negras não são chamadas para debater outra coisa que não seja questão racial, muitas vezes se escrevem personagens que tem como personalidade “ser negro” ou até mesmo “apenas estar ali”. Dino Thomas é completamente inútil nos filmes do Harry Potter, por exemplo. Só está ali para “cumprir a cota”. E aí o mesmo fandom cometeu ataques racistas quando fizeram um cast teatral com uma Hermione negra”. 

Atualmente esse panorama mudou um pouco, longe do ideal, mas  já conseguimos ver obras que representam, dentro e fora da tela, pessoas não brancas. Em super heróis como Pantera Negra, Luke Cage, Super Shock, Black Lightning. Em franquias como Star Wars, e séries como This is Us, Brooklyn Nine-Nine, The Walking Dead e The Good Doctor. Apesar de em quase todas as séries o protagonismo ainda ser branco, a construção dos personagens negros não vem mais carregada de esteriótipos, esses personagens tem uma história, problemas cotidianos, com carreiras não só ligadas ao esporte e a música por exemplo. 

O musicista e professor Murilo César, concorda que atualmente esse panorama está mudando e que o foco da representatividade deve começar na infância.

Você pensa em Princesa da Disney, as crianças sempre querem brincar de ser um personagem, então não existia uma escolha para quem é preto saca? Hoje em dia tão colocando mais, tem Tiana, Moana…” 

Meu priminho tinha 4 anos quando lançou Pantera Negra, ele nas brincadeiras dele só falava que era Hulk ou Thor, e quando ele viu o Pantera Negra pela primeira vez ficou maravilhado, só brincava sendo Pantera Negra. A mesma coisa com o Homem Aranha no Aranhaverso.”

 

Cosplayers de Pantera Negra

Para ele é importante também criar um lore (as tradições, cultura, histórias do mundo em que o personagem está inserido) e não apenas transformar um personagem branco em um negro: “Não sendo secundários, mas em posições importantes. Enriquece demais. Não é tipo só ter por ter, tem que ter um motivo que faça sentido, como a vida real”.

Ruggeron também fala nisso, quando cita boas representações que existem hoje em séries e filmes: 

Moonlight, por exemplo, traz pra tela um garoto negro, gay e periférico, na trajetória de sua humanização. As personagens têm camadas e oposições internas e entre os diversos personagens na tela (as duas figuras maternas, por exemplo, são extremos opostos). Não que seja uma narrativa perfeita, mas está em constante evolução. 

Moonlight ganhador do Oscar 2017

Chidi Anagonye de The Good Place é um personagem super bem-escrito, que sem desrespeitar sua negritude (também não estamos falando para esquecerem que eles são negros!) é uma representação belíssima de intelectualidade e humanidade. A tendência deve ser essa nos próximos anos, mas hoje ainda existe uma grande deficiência nisso, sim.

E quanto a questão racial?

Como já dito acima, a influência midiática no comportamento social é uma das mais contundentes que temos, e é importante trazer esses assuntos para que seja visto e discutido. Para que as pessoas que não convivem com ele entendam o que é, e comecem a lutar para mudá-lo (o racismo é uma invenção das pessoas brancas, portanto somos nós que devemos acabar com ele)

Hoje muitas obras retratam a luta diária de pessoas negras contra o racismo, usam esse espaço para dar voz a esse problema e não só da forma rasa que era antigamente, com histórias onde algum personagem branco vai vir e salvar a história (12 Anos de Escravidão, de 2014) ou com personagens vazios que só se resumiam a isso.  E embora a vida de uma pessoa negra não seja só racismo, assim como de uma mulher não é só na luta contra machismo, “É  preciso debater mudanças estruturais que a sociedade necessita”, comenta Ruggeron.

Um dos fatores que permitem essa abordagem é o maior espaço que cineastas negros estão alcançando como Jordan peele, Ava DuVernay, Spike Lee, Kasi lemmons, Ryan Coogler, Barry jenkins, são grandes nomes de diretores que nos últimos tempos criaram obras com personagens bem desenvolvidos, que representam a cultura negra e jogam o holofote no racismo: 

Apesar de não acreditar numa representatividade vazia e nem que pessoas negras tenham obrigação de só falar sobre negritude, devendo e podendo ser consultadas para tratar de outros assuntos, é mais fácil que narrativas pretas de qualidade saiam da mão de pessoas pretas. A vivência não pode ser menosprezada nesse caso. Existem algumas coisas que, realmente, só a pessoa racializada vai saber transmitir, afirma Ruggeron. 

Em Infiltrados na Klan (2018), Spike Lee mostra as ações da KKK (eles inclusive assiste ao filme O Nascimento de Uma Nação em uma das cenas), os obstáculos colocados no caminho dos afro-americanos pelo contexto de violência e perseguição e o papel das organização negras como Black Panthers. 

Ava DuVernay fez trabalhos incríveis no documentário a 13ª Emenda que analisa a 13ª emenda da constituição americana que diz que o trabalho forçado seria proibido, exceto como punição e como isso foi o princípio do encerramento racial em massa. A questão que é amplamente discutida também em Orange is The New Black e Oz

E na série When They See Us, caso verídico sobre 5 garotos negros que foram acusados e condenados injustamente pelo estupro e agressão de uma mulher no Central Park, em 1989. Não houve investigação, a polícia coagiu os meninos para obter a confissão deles, apenas por serem negros andando no parque se tornaram suspeitos no caso. 

E é impossível falar sobre racismo sem a questão da violência policial, de acordo com uma matéria do The Guardian, a diferença entre as mortes de afro-descendentes e demais etnias presentes no país é a mais alta em todo planeta: 50,3 mortes de negros a cada cem mil habitantes, contra números que variam de 20 e 22,9 mortes a cada cem mil habitantes brancos, latinos e asiáticos. 

Um Maluco no Pedaço e Todo Mundo Odeia o Chris, apesarem de serem séries mais antigas, passadas nos anos 90 e no começo dos anos 2000, respectivamente, discutem sobre o mesmo problema que ocorre hoje em dia:  a violência contra a população negra e como eles são vistos sempre como alvo pela polícia.

“Você pode abaixar as mãos, Jazz/ Sem chance, o cara tem uma arma, quando você menos esperar, eu ganho 6 tiros de advertência nas costas”

Isso é abordado ostensivamente  em  muitas séries atualmente, como Atlanta, How to Get Away With Murder e Watchmen (que também falou sobre KKK e a supremacia branca). Em OITNB, A morte de Pussey, foi inspirada na morte de Garner e foi uma escolha da diretora de matar uma personagem “tão boa e querida” porque é exatamente o que acontece na vida real.

No episódio “Replay” de Twilight Zone (2019), revival desenvolvida e narrada por Peele, a história gira em torno de uma mãe e seu filho, que é baleado pela polícia e ela tem o poder de voltar no tempo para tentar mudar essa situação. Mesmo plot do filme A Gente Se Vê Ontem (2019). 

episódio Replay de Twilight Zone

Brooklyn Nine-Nine também aborda essa questão no episódio Moo Moo, onde Terry é parado pela polícia em sua própria vizinhança.

Se a indústria está se remodelando, por dentro e por trás das produções, ainda é preciso de muito mais espaço.

“É um passo muito pequeno de cada vez, porque se preocupa muito com a opinião pública que, infelizmente, reflete o racismo, quando saiu a notícia, por exemplo, de Ariel, o mundo caiu em cima reclamando. Ou a notícia que Niles Fitch vai ser o primeiro príncipe negro “wow estamos sendo representados”, mas é um passinho em meio a tanta falta de representatividade”, comenta Kelvin

É preciso dar espaço para pessoas não-brancas em todas as áreas do audiovisual, para que mais histórias sejam contadas, que a cultura seja representada, e que possamos ligar a televisão ou ir ao cinema e ver negros, latinos, asiáticos como protagonistas, onde suas histórias sejam o centro do enredo, e não um suporte ao personagem branco.

Que o racismo seja denunciado em todos eles, afinal, a mídia tem o poder de ampliar a discussão, mas que não seja apenas isso!

Para assistir mais: Mississippi em Chamas, No Calor da Noite, The Knick, Ó Paí, Ó, Felicidade Por um Fio, Cara Gente Branca, Selma e What Happened? Miss Simone? (documentário importantíssimo sobre Nina Simone) .

Para saber mais

  • http://nodeoito.com/estereotipos-mulheres-negras/
  • https://www.bbc.com/news/magazine-33049099
  • http://www.justificando.com/2018/09/03/quem-tem-medo-do-cinema-negro/
  • https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/racismo/reconhecendo-estereotipos-racistas-na-midia-norte-americana-por-suzane-jardim/

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Como Angela Davis disse, não adianta não ser racista é preciso ser antirracista. Consuma obras de pessoas negras, escute o que elas tem a dizer, estude sobre o assunto, discuta sobre isso dentro do seu círculo social, use seu privilégio para dar espaço e oportunidade para pessoas negras, é preciso mudar para que situações como essas não aconteçam mais, para que vidas inocentes não sejam mais perdidas por isso. É inadmissível que em 2020 ainda precisemos discutir racismo e violência policial.

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