Perder uma fonte rica de histórias que realmente ensinam sobre diversidade étnica é muito entristecedor.

Nenhuma outra das demais temporadas de Anne with an E me fez chorar tanto. E não por ser o fim, nem mesmo pelos pequenos romances água com açúcar ou por brigas triviais de família. Até porque todas essas coisas – e mesmo os demais assuntos importantes da série – ficam tão, tão pequenos quando comparados aos problemas das duas linhas de tempo secundárias da série que chega a ser estarrecedor. E só é possível explicar esse raciocínio entrando em detalhes da última temporada.

* O post a seguir contém spoilers da terceira temporada de Anne with an E *

Eu amo a história da Anne de Green Gables. Fiz o primeiro post do site enaltecendo a série com genuíno amor pela adaptação da Netflix, que foi sincera e sensível, tocando o coração de muita gente exatamente por causa dessa terna sensibilidade com temas que até hoje permanecem atuais, como: o começo da difícil emancipação feminina, o sofrimento de crianças órfãs, as diferenças entre classes sociais, as dificuldades dos imigrantes, sobre homofobia ou bullying. Mas a partir da segunda temporada, a série demonstrou interesse em se aprofundar ainda mais nas dores do mundo, abraçando ainda mais públicos – que sempre é um caminho extremamente necessário a se traçar.

E é exatamente por isso que todas as outras problemáticas da série começam a parecer menores: somente quando se sai do conforto de retratar as dores da branquitude é que se percebe que o mundo é sempre mais doloroso além da perspectiva do próprio umbigo. Mais doloroso especialmente praquelas minorias marginalizadas e invisibilizadas.

Eu amo como a série continuou o discurso sobre emancipação feminina e que ela continuou a retratar os problemas dos órfãos, ou como ela abordou a importância da liberdade de expressão e falou sobre diversos outros assuntos preocupantes. Mas o fato é que nenhum deles tirava tanto o conforto e desconcertava tanto como assistir as problemáticas apresentadas nas duas linhas secundárias: a linha da família do Sebastian e, principalmente, a linha do povo indígena Mi’kmaq. E isso porque é difícil competir com cenas que são, pura e simplesmente, como um soco no estômago. Porque são assuntos que, infelizmente, ainda não se acostumou a retratar, mesmo nos dias atuais.

Perder uma série que deu a personagens negros e indígenas uma voz ativa é algo a se lamentar profundamente, principalmente quando pouquíssimas séries da atualidade se dão ao trabalho de retratar com certa minuciosidade assuntos que tangem essas duas etnias, tentando construir não apenas empatia, mas uma visão mais profunda sobre racismo para o público branco.

Podemos dizer que temos hoje algumas séries de públicos-alvo variados falando sobre o racismo contra os negros, mas nenhuma série atual falando sobre o racismo contra povos originários e indígenas.

Entendem a gravidade da situação?

Uma autora mi’kmaw da Medium, inclusive, relatou que assistiu a série exatamente porque jamais havia visto seu povo retratado na televisão anteriormente. Falaremos mais sobre esse relato logo adiante.

Pra finalizar essa primeira linha de raciocínio, Anne with an E foi uma oportunidade didática para que pessoas brancas (especialmente crianças e adolescentes) compreendessem minimamente o mal que brancos causaram a pessoas não-brancas e o impacto disso através de gerações. Não somente sobre escravidão, mas sobre linchamento pós-abolição. Não somente sobre colonização, mas sobre genocídio cultural e epistemicídio.

A linha de tempo dos Mi’kmaq

Imagem: Netflix

Traduzindo nas palavras de Lydia, autora indígena do post anteriormente citado, porque, obviamente, ninguém melhor que um indígena para falar do assunto:

Onde Anne se destaca mais do que incontáveis séries de colonos, é o cuidado e o respeito colocados em representar os povos que eles estão usando em suas histórias. Todos os detalhes, como o idioma fluindo bem e informalmente em vez de uma tradução rígida do dicionário (com exceção de algumas confusões de pronúncia), como as roupas que vestem, como o boné repicado de Oqwatnuk, como pessoas retornando ao acampamento com enguias recém-capturadas no fundo, como a incorporação da música Honour Song na trilha sonora… Tudo fala muito bem do esforço genuíno colocado em precisão por Moira Walley-Beckett [a diretora] envolvendo os Mi’kmaq no processo criativo. Isso faz de Anne um elemento básico no crescente progresso da inclusão indígena na televisão.

No entanto, aqueles familiarizados com a série sabem que não é estranho que surjam tramas mais sombrias e representações brutalmente honestas de coisas como misoginia, cissexismo e racismo. A segunda temporada recebeu elogios da crítica por abrir o mundo de Anne à diversidade presente na história do mundo real, com as experiências positivas e negativas no período. Não é de surpreender que o mesmo seja feito para os Mi’kmaq de Epekwitk. O que começa com Anne fazendo amizade com seu mais novo espírito amigo (kindred spirit), Ka’kwet, mergulha rapidamente em uma das partes, senão A parte mais sombria da história do Canadá: o sistema escolar indígena [residential schools].

A terceira temporada mostrou a devastadora forma com que crianças indígenas eram arrancadas de seus lares e dos braços de suas mães para serem internadas em escolas católicas, onde elas eram maltratadas e humilhadas, abusadas verbal e fisicamente, forçadas a deixarem seus traços culturais, seus nomes e língua materna para trás.

Imagem: Netflix

Foi a primeira vez que tive acesso a esse tipo de informação histórica e, claro, foi um choque. Não é exatamente uma novidade que povos originários eram tratados como “selvagens”, já que pessoas indígenas foram e ainda são tratados assim independentemente de qual continente moram. Mas saber de casos particulares e ver como homens brancos do Canadá usavam força bruta em crianças indígenas com a desculpa de “salvá-las” (já que os adultos estavam além da tal salvação), foi algo aterrorizante de acompanhar. A cena em que os pais de Ka’kwet choram porque são impedidos de levá-la para casa me emocionou intensamente.

Imagem: CBC

Com apenas um pouco mais de pesquisa, é possível perceber que a série apenas tocou na superfície desse problema das escolas residenciais. Lydia comenta também que a série apenas deu dicas para os assassinatos reais, para as agressões sexuais ou para as doenças, negligências e experimentações médicas que povos originários do Canadá sofreram por causa dos colonos.

Apesar de saber que cancelamentos muitas vezes fogem do controle das produtoras, é muito triste e sinceramente desapontador que a Netflix e a CBC não tenham dado um encerramento mais decente pra história da família da Ka’kwet. No final, o gosto que fica é amargo em dobro: tudo parecia ser interessante somente enquanto envolvia a influência de Anne e dos Cuthbert. Mas quando eles vão embora, o público ficou sem saber o que realmente acontece com os pais da menina ou se algum dia ela conseguiu ser resgatada. Decerto que planejavam resolver o assunto nas próximas temporadas, mas a partir do momento que a produção ficou ciente da condição do cancelamento da série, era de extrema importância fazer com que todas as linhas de tempo tivessem uma conclusão apropriada. E uma vez que a temporada final tinha um claro foco nos povos originários desde os primeiros episódios, por que eles foram negligenciados no fim?

E se não foi negligência, se foi uma forma de mostrar que essas coisas realmente aconteceram e que ninguém fez nada pra ajudar – que Ka’kwet não foi salva e que seus pais nunca conseguiram levá-la pra casa… Bem, é algo extremamente difícil de digerir, especialmente porque foi algo baseado na realidade do país. E que leva a entender que mesmo hoje esses povos continuam a ser invisibilizados e tratados apenas como parte “histórica” do Canadá.

Mas, apesar de tudo, o fato é que poucas séries causaram tanta comoção para o assunto. E a série tem o tipo de narrativa que instiga as pessoas a pesquisar mais sobre, que é um passo fundamental pra podermos evitar que os erros do passado sejam cometidos no futuro.

E é importante também que fique registrado: é preciso ir além de sentir empatia. Precisamos abrir mais os nossos olhos para como os povos indígenas foram e ainda são tratados, aprender sobre a extensão do dano que causamos como pessoas brancas e o que fazer para amenizar e retratar essa dor, assim como garantir que suas culturas não sejam apagadas.

A linha de tempo dos Lacroix

Imagem: Netflix

Ter uma série mostrando não apenas o sofrimento mas os triunfos de personagens negros é algo louvável. Mostrar como Bash conseguiu formar uma amável família e se estabelecer como agricultor local, apesar da relutância de pessoas brancas em aceitá-lo, foi algo realmente bonito. Os últimos momentos de Mary foram cenas ainda mais comoventes exatamente porque demonstraram como aceitação e empatia podem fazer uma diferença gigantesca na noção de comunidade.

Imagem: Netflix

É inclusive lamentável que a série não tenha dado pra Mary, a única mulher negra de maior relevância em todo o enredo da série, a chance de um desenvolvimento mais amplo e aprofundado. Ela merecia mais, e as pontas soltas de sua história deixaram um vazio estranho na série.

Também foi bastante comovente ver o relacionamento entre Sebastian e sua mãe, Hazel, sendo destrinchado de forma a mostrar um atrito proveniente de uma diferença geracional, tanto em questões de paternidade/maternidade quanto de status quo.

“Você queria algo bom, eu queria que você sobrevivesse”. Imagem: Netflix

Essa linha nos fazer perceber, com pesar e inevitável choque também, que apenas alguns anos de diferença é o suficiente para que uma pessoa negra triunfe como Sebastian ou seja linchado até a morte como foi seu pai, simplesmente por querer um pedaço de terra pra chamar de lar e um trabalho digno para cuidar de seus entes queridos.

Isso sem comentar dos muitos outros detalhes que surgiram na série, correlacionados ao racismo que negros sofrem, que não foram mais desenvolvidos.

Anne with an E se esforçou um pouco mais pra ser um diferencial quando demonstrou um elo real de amizade e irmandade entre Gilbert e Sebastian, fugindo do padrão grosseiro visto em séries que comumente caem no complexo do salvador branco. Abaixo um adendo, para compreender este termo, citando o post do site Janelas Abertas:

Resumidamente, o termo é usado quando alguém acredita que pode “resgatar” pessoas negras de uma situação de pobreza ou vulnerabilidade, simplesmente por ser branco e/ou vir de uma posição econômica mais privilegiada.

Ao se juntar com a exposição na mídia e nas redes sociais, esse complexo contribui pra reforçar estereótipos, como os de que África é um continente homogêneo e miserável e que seus habitantes são incapazes e precisam de ajuda externa.

Isso tem a ver, por exemplo, com o fato de que muita gente pensa em viajar para países africanos pra fazer trabalho voluntário, enquanto pouca gente quer ir conhecer sua cultura e belezas naturais (especialmente se excluirmos as viagens de luxo e safaris).

Imagem: Netflix

Enfim: por causa de Sebastian, Gilbert ganha uma nova família e consegue vencer o luto por seu pai. Por causa da ajuda de Gilbert, Sebastian consegue se estabelecer em um novo lar e lidar melhor com o luto por Mary. Ao final da temporada, Sebastian tem uma família ainda maior e uma compreensão mais desenvolvida de sua herança familiar. Sua história é triste, mas ela não é reduzida ao preconceito que ele sofreu.

Vários pontos nessa linha de tempo poderiam ter sido trabalhados de forma mais contundente, para que, por exemplo (como apontado pela leitora Larissa Cordeiro) a série não passasse para o público a impressão da romantização do convívio de pessoas negras numa sociedade branca ou de uma espetacularização do racismo. E a falha nesse sentido com toda certeza pode ser atribuída ao fato de que nenhum dos diretores, roteiristas ou produtores da série eram negros. A inclusão deve ser pensada também nesse sentido, pois só assim as histórias conseguem ser justas.

***

É bom e sábio ter noção de que nossas dores muitas vezes são menores que as dores dos outros. É importante reconhecer privilégios e saber que somos responsáveis por garantir que esses privilégios começarão a ser de acesso universal.

É realmente uma pena que uma série com tanto potencial para explorar temas sensíveis e importantíssimos de maneira extremamente didática termine aqui, quando ainda tinha tanto a falar e a ensinar.


Leia mais sobre Anne with an E aqui!

Créditos das ilustrações da capa: Luz Tapia Art

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