O assédio no mundo dos games também precisa ser denunciado.

Enquanto Hollywood continua se acertando com a (por muito tempo ignorada) história de abuso e violência contra mulheres, a indústria dos videogames parece estar prestes a enfrentar um acerto de contas parecido. Diversos proeminentes desenvolvedores de jogos têm sido acusados de violência sexual contra mulheres, inclusive Zoe Quinn, que foi uma das mulheres mais violentamente atacadas pelo movimento Gamergate.

O movimento surgiu com Nathalie Lawhead, uma designer de jogos, que publicou um texto intitulado “Expondo o meu estuprador” (Calling out my rapist, no original), em seu site. Ela detalhou então como foi violentada por Jeremy Soule, um compositor. Lawhead incluiu diversos e-mails que fundamentavam suas acusações e escreveu sobre o ambiente tóxico de trabalho que a levou a perder o emprego.

Eu descobri as consequências envolvidas em compartilhar isso. Eu sei o que acontece quando fandoms AAA (referência ao mercado de grandes jogos eletrônicos) vão atrás de alguém, mas eu não poderia sobreviver sem falar sobre isso. Viver com isso é como morrer lentamente. Estou sufocando. Eu odeio a forma como falamos sobre estupradores. Eu odeio como os defendemos. Eu odeio como você pode compartilhar tudo isso, e lentamente assistir a sua sanidade ser questionada, e tudo sobre você ser vasculhado até o ‘será que realmente aconteceu com você?’ ‘mas você não queria?’…

Ela continuou:

Jeremy disse um monte de coisas sobre mim, para ter certeza que eu não teria nenhuma chance. Ele controlou meu sucesso. Ele controlou como as pessoas me viam (tanto positiva quanto negativamente). Ele é bom em fazer as pessoas acreditarem que ele estava na verdade ajudando, e que você está fora de si. Eu trabalhei muito duro para provar que tudo isso estava errado e para chegar ao ponto em que poderia dizer algo e ainda ter uma chance de ser ouvida.

Após a publicação de Lawhead, Quinn então publicou em sua conta no twitter sobre suas experiências com Alec Holowka. Seu relato angustiante detalha como ela sofreu gaslighting, foi agredida e teve sua carreira ameaçada por Holowka, e é um texto difícil de ler, mas importante. Como a desenvolvedora tornou sua conta no twitter privada por causa dos ataques sofridos pela declaração, transcrevemos abaixo a mensagem em tradução livre:

Eu quero dizer, antes de qualquer coisa, que não estou falando isso por causa de ninguém senão eu mesma e as outras pessoas que possam ter sido feridas por ele, ou venham a ser no futuro. Eu li a publicação de Nathalie Lawhead sobre o seu estuprador ser uma lenda da indústria que se aproveitou dela e envenenou sua carreira, e isso mexeu profundamente comigo. Sua saúde minguante, seu medo, a forma como ela descreveu este sentimento de estar se afogando… Meu coração se partiu por ela. Além disso, me senti *envergonhada*. Tanto entre os pequenos detalhes, e até o timing, foram coisas que eu também passei, com poucos meses como desenvolvedora de jogos indie. E isso me assombra desde então. E é por isso que não vou mais para a GDC [Game Developer Conference]. Eu também estou me afogando.

Em poucos meses como desenvolvedora de jogos, eu fui vítima de violência sexual. A situação do meu visto foi ameaçada caso eu contasse para alguém, e ele ainda foi, do jeito dele, contar para toda a comunidade que eu estaria falsamente o acusando de estupro, quando eu não tinha falado nada para ninguém (mas um terceiro que viu acontecer o confrontou sobre isso no dia seguinte). Essa não é uma história sobre ele – após anos de terapia, trabalhando consigo mesmo, ele me procurou e pediu desculpas por tudo e eu o perdoei. Mas esse é o pano de fundo desta história.

Um mês depois do ataque, eu quis deixar Toronto. Eu estava assustada, não conseguia dormir, e quase me matei por causa disso. Eu escrevi um bilhete de suicídio e tudo pronto, mas não queria fazer isso com meu colega de quarto.

Entra Alec Holowka. Sim, aquele de Aquaria e Night in the Woods. Ele era a pessoa que eu sentia que, em meu novo campo de trabalho, me apoiaria.

Ele falava sobre o quão barata e incrível Winnipeg era, e nós flertávamos e conversávamos pelo Skype por horas. Ele sabia que eu estava em um momento extremamente vulnerável e me convidou para visitá-lo em Winnipeg para ver se eu queria começar uma ‘indie house’ lá com três amigos que ele havia conversado sobre a ideia, e pra ver se as coisas entre nós seriam tão legais quanto pareciam à distância. Duas semanas. Eu comprei a passagem de avião para lá e ele compraria a passagem de volta. Ele sabia que eu não poderia arcar com todo o custo de outra forma, e então esse foi o acordo.

Eu não voltaria para casa por um mês, e só conseguiria porque meu colega de quarto usou suas milhas para me tirar do apartamento em que ele havia me confinado fisicamente.

Enquanto eu estava em Winnipeg, ele lentamente me isolou de todas as pessoas da minha vida, enquanto me rebaixava absolutamente sempre que estávamos sozinhos. Ele me convenceu a fazer com que os três amigos desistissem de ficar no local compartilhado comigo. Ele me convenceu a deixar que ele programasse o meu jogo, em vez de meu amigo que trabalhava comigo, apesar de muito protesto. Ele gritou comigo por mais de uma hora por causa do meu tom de voz quando eu disse ‘oi’. Ele não me deixava sair do apartamento sem ele e se negava a me passar o código para entrar nele.

Sobre a violência sexual, ele me culpou. Ele disse que sentia ciúmes de mim, de ser desejado daquela forma. Ele trazia isso durante o sexo, quando ele era regularmente maldoso e violento. Ele me disse que me amava de uma maneira que ninguém mais amaria, porque ele via que eu era terrível e ainda assim me amava. E eu comprava essa história, porque é isso que você sente quando está tentando se recuperar de violência sexual.

Eu passei boa parte daquele mês escondida dele no banheiro. Seu humor oscilava e ele arremessava coisas e se machucava aleatoriamente, para então me culpar. Ele enfiava seus dedos dentro de mim e me arrastava pela casa quando eu falava que isso machucava.

Eu tinha medo de fugir. Eu tinha medo de contar para alguém. Ele agia normalmente quando outras pessoas estavam por perto e se deitava sobre mim assim que ficávamos sozinhos, e então pedia desculpas dizendo o quanto ele precisava de mim e me amava. Eu fiquei ainda mais assustada quando as duas semanas haviam terminado e ele ficava adiando a planejada passagem de volta. Eu passei muito tempo no banheiro me escondendo dele. Meu colega de quarto começou a ficar preocupado e me perguntou se eu precisava de ajuda para sair de lá. Eu disse que sim, e o Alec sequer olhou para mim enquanto eu ia embora.

Quando cheguei em casa, enviei um cordial e amigável e-mail terminando com ele. Ele se revoltou e me baniu de uma comunidade de jogos indie que ele administrava. Depois ele se baniu, e foi atrás de outras lendas da indústria pedindo ajuda para se matar porque eu era uma ‘vadia’. Ele fez questão de me colocar na lista negra de diversos eventos importantes da indústria. Ele tentou arruinar a carreira que eu havia acabado de começar. E de certa maneira, funcionou.

Na noite em que o GG (GamerGate) começou, eu fiz um comentário aleatório no Facebook sobre isso, sem especificar qual ex e duas mulheres da indústria imediatamente me enviaram mensagens perguntando se era o Alec. Ele havia feito coisas similares com elas. Elas sabiam de sua obsessão por mim e também tinham medo de falar sobre uma lenda da indústria.

Tem sido a melhor parte da década e eu ainda tenho medo dele. Medo demais para falar em público, especialmente por tudo que passei publicamente, como se as pessoas fossem apenas virar os olhos e me ignorar, como se houvesse um limite kármico sobre quanta coisa ruim uma pessoa pode passar até que as pessoas parem de ouvir.

“Eu tenho medo que as pessoas se importem mais com o seu amor por Night in the Woods do que com a segurança e a realidade das mulheres e pessoas não-binárias na indústria dos jogos.

Eu ainda tenho medo dele. Eu ainda tenho medo de contar a alguém sobre ele. Eu tenho medo de quantas desenvolvedoras independentes possam ter visto este comportamento dele e deixado passar. Eu tenho medo de estar no mesmo local que ele, porque tenho medo que ele me machuque novamente. Eu tenho medo de todos os desenvolvedores que viram isso acontecer, e assistiram a ele berrar abusos contra outras mulheres, na frente de todo (Centro de Convenções) Moscone durante a GDC.

Mas ficar em silêncio por anos tem sido pior do que o medo. Eu evitei as duas últimas GDC porque não queria arriscar estar perto dele, ou vê-lo receber aplausos do público. Especialmente das pessoas que sabiam.

Eu não desejo mal a ninguém. Eu sei que Alec provavelmente não está bem e eu sempre acreditarei em recuperação acima da punição. Eu não quero que nada ruim aconteça aos seus colaboradores que podem não saber nada sobre isso. Mas eu assisti o bastante aos grandes nomes da comunidade indie que sabem sobre ele – tanto que a reação ao seu primeiro descontrole sobre mim foi um ‘oh, bem, esse é o Alec, o que você pode fazer?’ – e eu já vi o bastante para saber que nada acontecerá sobre esse degrau quebrado em particular, a menos que alguém diga alguma coisa. Mas estamos todas com medo. Eu estou com medo. Uma grande parte infantil de mim ainda espera que as pessoas de alguma forma comecem a se importar, ou perceber por conta própria.

Mas se sentir uma covarde em frente a força de Nathalie, sentindo como se eu tivesse que me esconder da minha própria vida porque não é seguro, e não pudesse contar para ninguém o *porquê* de eu estar me escondendo, sabendo que eu não sou a primeira e nem a última, se afogando, isso é demais para eu carregar. Eu só quero que isso passe e eu possa respirar de novo. Eu não quero que outra desenvolvedora novata se machuque e tenha que ouvir que ‘ele é assim mesmo’ depois de mim. Eu quero respirar de novo.

Com isso, o Twitter de Quinn se tornou uma espécie de abrigo onde outras mulheres resolveram expor suas histórias sobre violência e assédio por desenvolvedores de jogos.

[Eu não sei, mas se for honesta, apesar de ele ter sido a minha primeira experiência ruim desde que resolvi fazer jogos/VR (realidade virtual), ele não foi o último ou mesmo o maior. Não por muito, Eu não sei se me sinto forte o bastante para contar essa história ainda. Não tenho certeza. Não tenho força suficiente para dizer o seu nome.

Foda-se. Essa experiência está grudada em mim por anos… Isso significa algo. Essa pessoa em posição de poder quando VR estava começando me fez me sentir pequena. Eu não devo desacreditar a minha experiência. Michael Antonov foi um nojento maldito comigo em um evento da Oculus. Homens não podem continuar fazendo isso.]

[Eu fui assediada sexualmente em uma festa de feriado da Oculus na frente de outros dez empregados, vários que se prontificaram a corroborar a história quando eu denunciei ao RH. O cara ainda trabalha lá. A política de tolerância zero da Oculus é um zero à esquerda, ao que parece.]

[Eu sabia que esta pessoa era “alguém” na indústria e fiz o meu melhor para evitar os seus avanços de forma amigável e com profissionalismo, com medo do que poderia acontecer caso eu o cortasse ou fizesse um escândalo. Ele não ia embora. Eu sentei e ele se sentou do meu lado passando seu braço ao redor do meu corpo.

Durante o resto da noite, essa pessoa continuou ficando perto demais. Tentava me comprar bebidas. Continuava me tocando e colocando seu braço ao redor do meu corpo. Ficou claro para mim que ele não tinha nenhuma intenção de me tratar como profissional. Eu continuei me afastando, falando com outras pessoas. Ele me seguiu.]

[Eu ia tornar isso público de qualquer forma, mas depois de me falarem que eu deveria ficar quieta porque eu poderia ficar marcada como um risco para o pessoal do RH, eu não podia mais esperar. Por favor, leiam. Por favor, compartilhem. Por favor, falem sobre isso.]

Outras histórias também surgiram posteriormente.

[Hey pessoal. Alguns tweets difíceis a caminho.

Essa semana, acusações de abuso no passado se tornaram públicas contra Alec Holowka, que era programador, compositor e co-designer de Night in the Woods. Nós levamos essas acusações muito a sério como equipe. E como resultado, após considerações agonizantes, estamos cortando qualquer laço com Alec.]

Esses relatos são dolorosos de se ler, mas é vital que façamos isso e valorizemos a coragem dessas mulheres. Elas merecem ser ouvidas, e merecem ver seus abusadores expostos e tendo que encarar as consequências de seus atos. Por muitas vezes, mas mulheres são envergonhadas até se calarem, mas não podemos tolerar isso. As mulheres merecem segurança e respeito no ambiente de trabalho, e se um homem cruzar essa linha, ele não deve se safar apenas por ser “alguém” na indústria.

[Algumas mulheres falaram sobre abusos na indústria dos jogos hoje e eu realmente quero pressionar:

Tornar seu abuso público é assustador e vitríolo. Você sabe o quão horrível será muito antes de falar. Por favor, não sejam parte do motivo que muitas dessas mulheres toleram o abuso silenciosamente.]

Apoiem as mulheres. Acreditem nelas. E pelo amor de tudo que é mais sagrado, não deixem os homens se livrarem disso.

Essas acusações são muito sérias e merecem ser tratadas com respeito. É hora de lutar por um ambiente seguro para existir, em todas as indústrias.

Hollywood foi a primeira, e ainda há um longo caminho pela frente, mas se o movimento #MeToo alcançar todas as forças de trabalho, levando a uma significativa mudança, só então poderemos dizer que o movimento chegou ao fim.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue

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