Um ótimo filme animado pra assistir em tempos de crise.

Se existe uma coisa que precisamos saber sobre Hayao Miyazaki, é quando o recluso diretor quer dizer alguma coisa, seja em uma entrevista ou em seus filmes, ele não é sutil. Não é a toa que a sua filmografia é conhecida por seu claro padrão pró-ambientalista, pacifista e humanista.

Essas mensagens são sempre bem-vindas, mas no meio de uma das maiores crises sanitárias do século, outra mensagem transmitida pelo cineasta acaba ganhando mais importância. E ela é mais claramente expressada em seu primeiro filme original, Nausicaä do Vale do Vento, e seu mangá com o mesmo título. Os heróis de Miyazaki normalmente tem sucesso após enfrentar mudanças radicais, existenciais e irreversíveis, superando o medo causado por elas, no final, aceitando-as.

Como já falamos antes aqui no Garotas Geeks, Nausicaä não é exatamente um filme do Studio Ghibli porque foi lançado antes do estúdio ser fundado. Ele foi produzido em 1984 pelo estúdio de animação Topcraft. Mas o seu sucesso — de bilheteria, crítica e com os contemporâneos de Miyazaki — deram ao diretor a influência e financiamento necessários para fundar o Studio Ghibli, um ano depois. Mas o que hoje é considerado um dos maiores filmes de animação de todos os tempos, surgiu como um mangá.

Após algumas tentativas falhas de colaboração com a revista Animage para adaptar o mangá para as telonas, Miyazaki concordou em produzir uma série original para a distribuidora, com a condição de que ela não seria adaptada para filmes. Posteriormente, ele acabou cedendo, com a condição de que ele fosse o diretor do filme — que se tornou um sucesso internacional, a base de fundação do estúdio e o início de uma carreira de sucesso.

Tanto o filme quando o mangá de Nausicaä compartilham cenários, personagens e vários de seus temas. As duas versões contam a história da princesa, exploradora, guerreira e pacificadora em sua jornada para acabar com o conflito entre facções humanas em um mundo onde a humanidade é atormentada constantemente pelo ambiente hostil.

Cerca de mil anos atrás, a humanidade antiga envenenou a Terra em uma guerra envolvendo armas terríveis conhecidas como “Guerreiros de Deus”, destruindo a sua própria civilização. A Terra envenenada deu origem a uma floresta que nunca parava de crescer, o “Mar da Ruína”, formado por plantas mortais e fungos que produzem um miasma que pode matar pessoas em minutos, caso não utilizem equipamento de proteção adequado o tempo todo.

O Mar da Ruína é habitado por insetos gigantes e territoriais, com carapaças impenetráveis e uma força física imensa. E esses insetos se reúnem em grandes enxames, atacando terras saudáveis até que morram de fome. Seus corpos carregam o miasma e servem de fertilizante para novas áreas da floresta mortal. O cotidiano da humanidade é extremamente limitado por isso e os dias de civilização são contados.

Mas ainda assim, mesmo tendo de encarar a revolta da natureza contra a humanidade, as pessoas não conseguem colocar fim nos conflitos entre reinos rivais e o mundo está mergulhado em guerras.

No filme, Nausicaä impede que um enxame de insetos tome sua terra natal e põe um fim a um esquema perigoso que colocaria um “Guerreiro de Deus” para destruir toda a vida no Mar da Ruína. Ela também descobre que nas profundezas do Mar da Ruína existe uma caverna vasta de árvores petrificadas onde o ar é puro, a terra é fértil e a água é limpa e segura. O Mar da Ruína só é cheio de toxinas porque seu objetivo é limpar a Terra.

A imagem final do filme é como um raio de esperança: uma semente crescendo naquela câmara profunda, sob um feixe de luz do sol. A imagem sugere que a recuperação do mundo pode levar centenas ou milhares de anos, mas se a humanidade aceitar as mudanças, tudo eventualmente melhorará.

A implicação disso é que o mundo é mais forte do que a violência da humanidade, e que seja com ou sem sua ajuda, ele se recuperará. Mudanças podem ser permanentes, mas nem sempre são para pior. Essa é a mensagem do filme de Nausicaä.

Já o mangá… É um pouco mais complicado.

Consumidores ávidos de anime e mangá sabem que muitas vezes as histórias dos mangás são adaptadas para animação antes da história original terminar, e Nausicaä é um desses casos. A primeira edição do mangá foi publicada em 1982, o filme foi lançado em 1984 e o mangá só veio a ser encerrado em 1994.

E naquele momento, ele já havia tornado mais complexo o tema da natureza ter tomado seu próprio curso. O mangá não apenas alerta que a humanidade deveria abraçar seu presente, mesmo com as mudanças. Ele afirma que se nós buscarmos mudar nosso ambiente presente, em vez de nos adaptarmos a ele, nós merecemos morrer.

No capítulo final do mangá, a nossa heroína descobre que a humanidade já se adaptou a respirar certa quantidade do miasma do Mar da Ruína — o que os tornou incapazes de respirar ar puro. A humanidade não sobreviverá ao mundo limpo que o Mar da Ruína está criando. E Nausicaä confronta a força que criou o Mar originalmente: um supercomputador biológico antigo, agora adorado como o “deus das trevas”.

Seu plano era limpar a Terra, eliminar a humanidade no processo, e substituir a civilização por um novo tipo de humanos modificados geneticamente.

Incapaz de destruir o Mar, e sabendo que ele eventualmente trará o fim da espécie humana, Nausicaä decide destruir a máquina ancestral e seus embriões humanos geneticamente alterados.

Ela rejeita o controle do passado sobre o presente, ainda que isso custe o futuro, se arrependendo apenas que os novos humanos da máquina tenham sido atingidos por causa disso.

“Eu tremo com a profundidade do meu pecado”, ela diz (em tradução livre) enquanto a máquina se despedaça. “Eles poderiam ser pessoas inteligentes e pacíficas. Não violentas, diferentes de nós.”

O momento final de heroísmo de Nausicaä acontece quando ela aceita que o mundo mudou e que isso dá à humanidade uma chance de tentar encontrar uma nova normalidade. O preço de não encontrar isso, porém, ainda será a morte.

Após o filme de Nausicaä, mas durante a produção do mangá, Miyazaki dirigiu alguns dos seus filmes mais leves, como Meu Amigo Totoro e O Serviço de Entregas da Kiki.

O diretor disse que o mangá de Nausicaä servia sempre como uma válvula de escape para suas ideias mais sombrias, permitindo que ele produzisse conteúdos mais alegres para as telonas.

Sob essa luz, não é surpresa nenhuma que o primeiro filme dirigido por ele após o final do mangá de Nausicaä foi Princesa Mononoke, um épico mais sombrio, sangrento e violento, em que os heróis são incapazes de impedir as mudanças radicais e a destruição da natureza. Naquele filme, ninguém realmente vence: a humanidade e a floresta sofrem grandes perdas.

Mas os protagonistas também encontram provas que a vida continua, ainda que de uma forma diferente da que esperavam. A floresta danificada crescerá novamente de uma nova forma, os humanos reconstruirão seu enclave destruído. Tudo depende dos personagens aceitarem que as coisas serão diferentes e buscarem adaptação. A mudança é imprevisível e incontrolável. Inevitável.

Nosso atual momento é cheio de incertezas. Nós nos questionamos sobre o retorno das atividades coletivas prazerosas, como lançamento de filmes em salas de cinema, eventos esportivos ao vivo, concertos e shows, bibliotecas, academias e parques. Nós nos perguntamos sobre nossos trabalhos, sobre os trabalhos de nossos amigos e pessoas amadas, e sobre o retorno das atividades que poderão empregar as pessoas que perderam seus empregos durante a pandemia. Nos questionamos se algum dia voltaremos a entrar em um avião, trem ou ônibus com tranquilidade, ou se poderemos participar de aglomerações sem medo.

O trabalho de Miyazaki, especialmente em Nausicaä, nos lembra que a mudança sempre está no horizonte, e que o verdadeiro heroísmo pode estar em aceitar isso, em vez de lutar contra ou reclamar. A ideia não é de baixar a cabeça e se perder na noite, mas de andar conscientemente em direção a um novo amanhecer.


Texto traduzido da Polygon.

Leia mais sobre Nausicaä do Vale do Vento aqui no site!

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