O resultado não é nada parecido com o que Noko esperava.

Os colegas estranharam a perda de peso repentina, e a criticaram.shibou-to-iu-na-no-fuku-o-kite-disturbios-alimentares-bulimia-dieta-relação-corpo-comida-mangá-otaku-6

Mayumi continua exalando seu ódio por Noko (e adquirindo prazer diante da tristeza dela).

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“Nada mudou porque você perdeu peso, Noko. Você é feia. Do fundo do seu coração”.

Não bastasse isso, além do comportamento de outros funcionários da empresa, Saitou e seu comportamento abusivo atacam novamente. Na verdade, em seu interior, Saitou acredita que as mulheres servem apenas para dar prazer.

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Já dá pra notar que ele é um babaca completo né? E não acaba por aí.

Quando ele vê que Noko emagreceu drasticamente, ele surta.

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Ele pega nos cabelos de Noko e pergunta o motivo de ela perder tanto peso. Ela diz que foi ele quem disse que ela deveria parar de falar sobre comer, e que ela queria ficar bonita como Mayumi.

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Loucamente, ele diz que ela FINGIU QUE O PERDOOU e o atacou pelas costas. Ele grita com ela, mandando que ela coma, enfiando comida em sua boca à força. Caso vocês não tenham notado, pela forma como foi retratado, Saitou quer dizer mais uma vez que Noko está emagrecendo para “se mostrar para os outros homens”.

Depois disso tudo, o mundo de Noko desaba de novo. Ela achava que emagrecer seria a chave de sua felicidade, mas ninguém a aceitou, mesmo depois de emagrecer tanto, de forma tão sofrida.

Embora ela volte a engordar em alguns momentos, a bulimia é latente. Veja um episódio muito bem retratado pela mangaká e recorrente em pacientes em recuperação, as famosas “recaídas”:

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“A imagem de mim que eles têm vai permanecer para sempre no meu ‘eu gorda’, e eles não vão me deixar ficar magra. Eu TENHO QUE FICAR MAGRA. EU TENHO QUE FICAR MAIS MAGRA”.

 

Tem um outro episódio também em que ela simplesmente não consegue engolir a comida.

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Noko fica presa nesse vai-e-vem de emagrecer e engordar, sempre pela vontade dos outros, ou guiada por sentimentos, mas nunca, NUNCA, por sua vontade própria.

E então ela percebe que ela não sabe quem é ou o que quer.

Não se iludam: esse mangá não tem um final feliz. Na verdade, o que ele diz é o preto no branco: se você estiver gorda demais, ou magra demais, nunca estará bom, a não ser que você esteja EXATAMENTE no padrão. Caso contrário, você será alvo de críticas, e, é claro, a errada é você.

A cena final é tocante. Noko diz que ficará bem, pois está vestida de roupas chamadas de gordura. E então entendemos aqui o motivo da escolha do título…

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Atenção: fim dos spoilers! Pode continuar daqui 🙂

Arte

De forma bem suscinta, a arte do mangá é simples. Os traços não são desperdiçados, pois cada um deles é usado unicamente para mostrar coisas relevantes para o entendimento da dor e do sofrimento de quem não está nos padrões de beleza impostos socialmente.

O viés do mangá é unicamente a conscientização, por isso não existe um capricho maior nos traços, o que eu acho totalmente justificável.

Reflexões

Para falar um pouco mais sobre os padrões de beleza e as consequências que eles causam na relação com a comida e com o corpo, convidei a nutricionista Paola Marchesini Altheia, especializada em comportamento alimentar e dona da página Não Sou Exposição, que busca conscientizar as pessoas através de questionamentos sobre imagem corporal, amor próprio, saúde e alimentação. Confira:

Fui convidada para tecer as minhas percepções a respeito do manga Shibou To Iu Na No Fuku o Kite e o que tenho a dizer é que, infelizmente, a história de Noko não é nada rara. Mulheres ocidentais e orientais (justamente por consequência de um processo histórico de neocolonização) são vítimas da ditadura da magreza e sentem que só serão reconhecidas e amadas se se encaixarem dentro de um determinado tipo físico (magro e longilíneo).

Existem milhões de mulheres no mundo que sofrem diariamente com o ritual privado da autodepreciação. A insatisfação corporal na população feminina atual é uma norma. Ou seja, a mulher não aceitar, não gostar e querer mudar o corpo de alguma maneira é uma regra, não a exceção. Tragicamente, muitas vezes a insatisfação corporal pode tomar rumos particularmente perigosos, levando a transtornos alimentares e práticas de automutilação.

Importantíssimo lembrar que antes de desenvolver bulimia, Noko já tinha um transtorno alimentar presente em sua vida: o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP). Trata-se de uma condição em que a pessoa perde totalmente o controle diante da comida e consome um grande volume de alimentos durante um curto intervalo de tempo. A longo prazo, o TCAP pode levar ao ganho de peso pronunciado e progressivo.

A compulsão alimentar não é uma doença simples. Muitas pessoas acham que é uma simples questão de “comer demais”, mas os episódios de compulsão não são o problema. Eles são o indicativo de que existe um problema emocional muito mais profundo. A pessoa utiliza grandes volumes de comida para regular o humor, para se acalmar, para se entorpecer, para buscar prazer, para aplacar a solidão ou o tédio e, em situações mais graves, se causar dano.

Quando o problema da compulsão é frequente, a pergunta que deve ser respondida é: qual é o sentimento ou situação que está desencadeando o sofrimento? Comer compulsivamente é uma maneira de lidar com os sentimentos desconfortáveis ou situações desafiadoras. É algo muito profundo, muito além de um “mau hábito”.

O que aconteceu com Noko foi que ela desenvolveu um mecanismo compensatório (provocar vômitos) para controlar peso. Muitas pessoas acreditam que bulimia é a doença que envolve apenas os vômitos autoinduzidos, mas o uso de diuréticos, laxantes e abuso de atividade física também configuram comportamento bulímico.

A pessoa que sofre de bulimia nervosa vive um ciclo doloroso e contínuo de compulsão e compensação, assim como foi mostrado no manga.

Ser mulher é um agravante, sem dúvidas. E por esta razão a incidência dos transtornos alimentares entre as mulheres é altíssima. Os transtornos alimentares são doenças intimamente relacionadas com a cultura. E não há outro modo de dizer: a nossa cultura maltrata mulheres sistematicamente.

O namorado (Saitou) e a rival (Mayumi) são personificações dessa opressão sistêmica. Representam o machismo, a rivalidade feminina, a baixa autoestima, a constante pressão para ser uma “boa menina” e agradar e as situações onde impossibilidade de reagir é total.

Um dos aspectos mais tristes a respeito da condição da mulher na sociedade atual e a constante busca pelo corpo perfeito (que conforme mostra o manga, é uma promessa de realização e felicidade que muitas buscam) é a dependência da validação externa.

Durante a nossa criação, recebemos falsas noções de humildade. Ninguém se sente livre para se amar, se acolher, se aprovar, se gostar. Porque se admirar é “feio”. Todas as pessoas têm uma necessidade inata e absoluta de amor. Todos nós precisamos receber validação e amor. Mas somos proibidos de providenciar isso a nós mesmos, de forma que a única opção possível é esperar isso dos outros.

O grande problema é que os outros nunca se darão por satisfeitos. Conforme a história mostra, nada que Noko faz é suficientemente bom. Ou ela é gorda demais, ou é magra demais. Saitou nunca a aprova totalmente e Mayumi nunca deixa de importuná-la, não importa o que aconteça. Ela é constantemente criticada por ser gorda. Quando ela emagrece significativamente, o argumento muda e ela passa a ser “feia”.

O nome do manga, que se torna claro no final, é bastante emblemático e é um retrato do valor simbólico que o corpo gordo tem para muitas mulheres: a gordura é uma “couraça” de proteção e uma barreira para o pleno e direto contato com a vida. As questões confusas, ambíguas e controversas a respeito da difícil tarefa de ser uma mulher neste mundo aparecem o tempo todo e permeiam não somente a relação com a comida, mas também a vida profissional e a sexualidade. Susan Orbach declarou em 1978 que “gordura é uma questão feminista” e isso continua sendo uma verdade imperativa. A “capa” de gordura continua sendo uma grande realidade na vida de muitas de nós e a realidade é que o peso é o menor dos problemas. O peso é um mero plano de fundo e o corpo se torna o palco das nossas mais primitivas angústias. É a história de Noko. É a história de muitas. E a resposta não está na balança. Não está no emagrecimento. Não está na comida.

A verdadeira chance de cura e redenção para Noko seria, finalmente, aprender a se amar. A dar-se todo o amor e validação que ela precisa.

Essa história não tem um final feliz para a protagonista, mas quem sabe possa provocar uma epifania de transformação em quem a lê.

Ame-se, moça.

É de graça.

Conclusões

Moyoco Anno, sem sobra de dúvidas, escreveu um mangá MUITO ALÉM DE SEU TEMPO. Hoje a discussão sobre o assunto é mais forte, mas na época em que o mangá fora publicado, o tema era um tanto quanto velado.

A obra traz mensagens importantíssimas, não só em relação à ditadura da magreza ou mensagens de auto-aceitação, mas também em relação ao feminismo. Em diversos momentos, é possível identidicar o viés feminista da mangaká, demonstrando muito bem que, infelizmente, o mundo é mais cruel com as mulheres. E que precisamos confiar mais em nós mesmas e no nosso potencial: do contrário, seremos pisoteadas.

Parece um tanto quanto exagerado dizer isso, mas bem sabemos que é a verdade.

Recomendo a obra para todos, principalmente pela mensagem que ele traz 🙂

 

Imagens: reprodução MangaFox

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