Mais um caso revoltante, mas nem um pouco fora do esperado em Hollywood.

James Gunn publicou no Twitter uma mensagem afirmando que em seu roteiro original para o filme em live-action de Scooby-Doo (2002), a inteligente e maravilhosa Velma Dinkley foi representada como abertamente queer – até que o estúdio decidiu apagar completamente a sua sexualidade.

Gunn é mais conhecido atualmente por dirigir filmes como Guardiões da Galáxia e a sequência de Esquadrão Suicida, mas ele trabalhou por muito tempo como roteirista. Seu primeiro grande trabalho foi a adaptação de Scooby-Doo para live-action, aquele filme estrelado por Sarah Michelle Gellar (Daphne), Freddie Prinze Jr. (Fred), Matthew Lillard (Salsicha) e Linda Cardellini (Velma). Ele também escreveu o roteiro da sequência do filme.

A informação surgiu em resposta a um pedido de um fã no Twitter, que implorava pela criação de novos filmes da franquia, e que “por favor torne realidade os nossos sonhos por uma Velma lésbica em live-action”. E Gunn respondeu dizendo que já havia tentado fazer isso há quase vinte anos.

Trad.: [Eu tentei! Em 2001 Velma era explicitamente gay no meu roteiro inicial. Mas o estúdio começou a diluir & diluir isso até deixar que ficasse ambíguo (a versão filmada), e então a nada (a versão lançada) e por fim tendo um namorado (a sequência)]

Isso é algo bastante frustrante, mas levando em consideração a forma como os grandes estúdios agem para diluir a representação queer nas telonas, não chega a ser surpreendente. Nós já sabíamos que alguns momentos que poderiam indicar sua sexualidade haviam sido removidos da versão final. O filme, dirigido por Raja Gosnell, foi pensado com o objetivo de atingir uma classificação indicativa de 13 anos, mas foi diluído até se atingir a classificação PG (menores de 13 anos com acompanhamento dos pais). Ele havia originalmente sido escrito em um tom um pouco mais sombrio e adulto, de forma similar à série original que era direcionada para um público mais velho (a série constantemente faz indicações que Salsicha utilize maconha, diferente do subtexto presente em adaptações mais recentes).

A justificativa para a remoção até mesmo da ambiguidade relativa à sexualidade de Velma foi a tentativa de transformar o filme em “uma obra para a família”, já que é comum que a sexualidade queer seja automaticamente ligada a situações sexuais. Pode ser um palpite, mas isso parece se alinhar com tudo que ficou implícito em 2002.

É legal ver que Gunn queria que Velma fosse abertamente homossexual, enfrentando décadas de especulação sobre a sexualidade da personagem e a forma como ela é abraçada como ícone LGBTQIA+ desde 1969. Seria importante nos dar mais informações sobre como isso seria apresentado no filme. Sua Velma original – antes de se tornar “ambígua” e finalmente, sem qualquer aspecto de sexualidade – namoraria abertamente uma mulher? Ele chegou a tentar trabalhar essa questão na sequência?

Em fevereiro, Gunn explicou em outra thread no Twitter algumas situações envolvendo o filme, que recebeu uma classificação indicativa de 17 anos pela MPAA, antes de ser mutilado completamente:

O filme originalmente deveria ser indicado para maiores de 13 anos, e foi cortado para menos do que isso após três pais saírem furiosos de uma exibição de teste em Sacramento. O estúdio decidiu buscar um caminho mais ‘family-friendly’. A linguagem, piadas e situações sexuais foram removidas, inclusive um beijo entre Daphne e Velma. Decotes foram removidos digitalmente. Mas, felizmente, os peidos continuaram.

O humor de banheiro e violência permanecerem em um filme “family-friendly”, enquanto qualquer sinal de sexualidade não-heterossexual é removido representa muito bem a indústria de cinema estadunidense. Isso nos faz imaginar que a Velma “explicitamente gay” seria muito mais do que um beijo e alusões vagas. De acordo com Sarah Michelle Gellar, o beijo removido não era uma situação romântica, e sim uma espécie de “piada”.

Não era tipo, algo por diversão… Inicialmente, na cena de troca de almas, Velma e Daphne não conseguiam recuperar as suas almas na floresta, e então descobriam que ao se beijar, as almas voltavam para os devidos corpos.

Um beijo entre Velma e Daphne, sem qualquer motivo que não a “troca de almas” parece a forma como elementos queer eram colocados em obras do tipo na época – vejamos, por exemplo, o beijo entre Sarah Michelle Gellar e Selma Blair em Segundas Intenções (1999)o que servia muito mais para provocar o público do que para criar real representatividade. E por mais que possamos esperar muito mais conteúdo do que um beijo desses e decotes apagados na obra originalmente planejada, temos que parar e lembrar que estamos falando do filme de Scooby-Doo, e que a grande reviravolta da história foi o fato do sobrinho irritante de Scooby, “Scooby-Loo” ser o verdadeiro vilão monstruoso. Não é uma obra-prima do cinema. E é difícil imaginar que o roteiro original seria muito mais profundo, por mais que eu espere estar completamente enganada.

Ainda que James Gunn seja um bom diretor, ele não é um pioneiro na criação de personagens femininas, ainda que tenha se comprometido a fazer mais nesse sentido após o primeiro filme de Guardiões da Galáxia. Ou seja, ainda que seja fantástico imaginar como seria uma Velma lésbica em 2002, a versão de James Gunn poderia deixar muito a desejar.

O motivo? Bem, em 2002, o elenco e Gunn conversaram sobre o tema em um tom completamente diferente. Em um artigo para o Seattle Times daquele ano, Anthony Breznican relatou que “piadas gays” foram removidas do filme. Cito um trecho:

O roteiro original apresentava uma cena em que Fred olhava lascivamente para Daphne enquanto ela se inclinava para colocar sua bagagem no compartimento sobre as cadeiras do avião. A câmera então virava para Velma, que também olhava para ela do mesmo jeito.

Cardellini então explicou:

Havia algumas cenas em que Velma saía de sua casca. Eu não diria que saía do armário, mas eu penso que é mais algo como talvez sua sexualidade ser um pouco ambígua.

E a resposta de Gunn não foi exatamente reveladora de suas tentativas de buscar representatividade na época:

O roteirista James Gunn, porém, afirmou que ‘tinha certeza que ela é gay. Então nós tínhamos um casal e algumas dicas sobre isso no filme, e no final, novamente, eram coisas que meio que (eram retiradas) das cenas’.

Ou seja, a Velma lésbica de James Gunn poderia ter deixado a desejar, mas ainda assim seria muito legal ter a chance de conhecê-la.

Ao menos podemos ouvir de um dos criadores mais recentes de Scooby-Doo, Tony Cervone (produtor de Scooby-Doo! Mistério S/A) que Velma era canonicamente lésbica em sua produção animada. Ainda é frustrante que isso não tenha sido visto nas telinhas, e que Velma ainda tenha sido colocada em um relacionamento com Salsicha. Em junho, Cercone publicou uma imagem de Velma no Instagram, ao lado da personagem Marcie Fleach, com a bandeira do Orgulho LGBT. Ao ser questionado pelos fãs sobre sua sexualidade, ele então afirmou o seguinte:

Eu já disse isso antes, mas Velma em Mistério S/A não é bi. Ela é gay. Sempre planejamos que Velma agiria de forma estranha e fora da personagem enquanto estivesse namorando com Salsicha, porque o relacionamento era errado para ela, e ela tinha uma dificuldade silenciosa em entender o motivo.

Demos muitas dicas sobre o motivo no episódio com a sereia, e se você seguir o arco inteiro da Marcie, é algo tão claro quanto era possível fazer dez anos atrás. Eu não acho que Marcie e Velma tiveram tempo para lidar com seus sentimentos durante a trama principal, mas voltando ao início, elas são um casal. Vocês podem não gostar disso, mas sempre foi a nossa intenção.

A animação foi transmitida originalmente entre 2010 e 2013, então não é muito claro o motivo porque Velma não poderia ser mais abertamente queer na série. Ou pelo menos poderia não ter namorado com um homem. É legal ver que Cervone tinha boas intenções com relação à personagem, e que tem coragem para falar sobre sua sexualidade agora, mas colocá-la em um relacionamento estranho com Salsicha apenas para mostrar sua “dificuldade silenciosa” parece ser algo ultrapassado.

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Devemos pensar que muitas crianças e jovens adultos estão assistindo ao show. Representação positiva pode fazer maravilhas e ajudar parte do público a entender sua própria sexualidade, ao mesmo tempo que promove tolerância nos demais. Por outro lado, todas as melhores intenções e projeções externas dos personagens não fazem muita diferença quando o público não tem acesso a elas.

Merecemos ver em um futuro próximo uma Velma que é aberta e orgulhosamente gay, e nem um pouco ambígua com relação a sua sexualidade. Neste momento, estamos todas cansadas desse tipo de situação.


Fonte: TheMarySue

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