Premiada série de mangás chega ao Brasil.

Existem alguns temas de quadrinhos que já ficaram meio batidos do tanto que foram usados. Mas sempre tem uma forma ou um ângulo diferente para se abordar que faz toda diferença. E rolou em I am a Hero – volume 1, de Kengo Hanazawa, lançado pela Panini.

I Am a Hero 1

Hideo Suzuki é um assistente de mangaká e tem 35 anos. O seu sonho de se tornar um autor renomado, famoso e rico – que é compartilhado por muitos japoneses – não deu muito certo. Ele mora num apartamento pequeno (padrão japonês, ou seja, apenas um cômodo/cubículo em que tudo fica amontoado e banheiro) e morre de medo de espíritos, do sobrenatural. Esse pavor o faz recitar rezas para afastar fantasmas além de ocasionar ligações para a namorada, com medo de ficar sozinho.

Aqui já pinta a dúvida: é mangá de terror? Esses fantasmas existem? Esse cara é tão sozinho e desamparado emocionalmente que passou a ter ilusões? E os zumbis? Cadê?

Continuando, o cara parece ser um grande babaca. Ao acompanhar o dia a dia de Hideo, se conhece mais da personalidade e manias dele. Ele é um desses caras cheios de certezas – vulgo, caga-regra -, que não deu certo na vida, já está velho para o padrão da sociedade, não é bonito e não é um dos mais legais da face da Terra. Ele tem crises devido a suas frustrações que vem à tona histericamente.

I Am a Hero 2

E assim vai seguindo a trama bem costurada, com um protagonista que não parece ser muito interessante, mas sim o que acontece ao seu redor. Inclusive sendo este um tópico tratado na trama.

Existe uma idealização na atual sociedade de cada um ser “o protagonista da sua vida“. Como se uma vida tivesse que ser de grandes aventuras divertidíssimas cheias de plot twists. E isso resultou numa sensação de fracasso naqueles que não alcançaram tal meta. Afinal, (a meta) é bizarra, idiota, depressiva e alienante. Hideo não se sente protagonista da sua vida e isso lhe dá a sensação de falta de controle.

I Am a Hero 10

A partir daí Hanazawa começa a desenhar o retrato ácido e sincero do mercado de mangás no Japão e dos seus autores, o mangaká, e não é bonito. Primeiro essa falácia de que só quem escreve boas histórias é quem viveu coisas interessantes na vida e tem bagagem. Seguido com a constatação de que para conseguir ter uma série de sucesso depende de variáveis e consome fortemente a saúde do autor, desglorificando esse personagem tantas vezes adorado.

Também toca na questão do editor, aquela primeira figura a quem se deve agradar. E, na HQ, dá a entender que nem sempre esse editor usa uma técnica, mas um gosto pessoal ou até mesmo se vai com a cara ou não do mangaká. E, claro, rola a crítica às fórmulas das séries, que repetem temas e estilos à exaustão.

I Am a Hero 7

Uma outra questão apontada é o machismo na cultura japonesa. Fica presente nas falas, no comportamento e manias dos personagens masculinos. Um desdém que pega pro lado da misoginia, tratando mulheres como seres inferiores que só tem que ser bonitas. Só o que importa são seus peitos. E aquelas que demonstram ser um pouco mais inteligente, os homens não sentem interesse. Mas quem são esses homens? São os otakus malsucedidos, feios, frustrados, sem namoradas ou sem sucesso na vida amorosa.

O tal retrato montado vai ficando íntimo, incômodo e estranho. Uma sociedade doente, de ambiente tóxico, mas não só culturalmente. Só que ler histórias sobre comportamento, dia a dia e angústias compartilhadas por todos é interessante de ler, rola aquela empatia, ainda mais quando bem narrado.

Mas não era para ser um mangá de zumbis?

I Am a Hero 8

Sim! E é. Como tudo neste roteiro bem elaborado, nada está realmente escancarado e toda pequena informação deve ser guardada. Logo no começo, Hideo aparece com uma arma. Inclusive, a capa é ele segurando a bendita. Contudo, em pouquíssimos momentos ele aparece com ela e apenas aqui e ali é falado de um grupo de tiro no qual ele faz parte. Da mesma forma, ocasionalmente, aparece um comentário sobre “uma gripe˜. O mais bizarro é quando ele vê uma garota sendo atropelada. Ela levanta e sai andando. Resta a dúvida; será que não é mais uma das ilusões dele? A menina saiu mesmo andando? O que foi aquilo?

O resultado é uma série de sucesso no Japão que chegou agora no Brasil e é incrível! Uma mistura de estranheza comportamental japonesa, narrativa que prende e não se sabe para onde está indo, com cutucadas e culminando num final que dá vontade de ler a edição seguinte imediatamente.

I Am a Hero Hideo

Mas não só de bom roteiro se sustenta I Am a Hero. A arte de Hanazawa é um show a parte. Com um ar cinematográfico, seu traço limpo e cuidadoso consegue dar sutis expressões humanas, como aquele olhar de canto, um leve sorriso ou um sutil levantar de sobrancelhas. Mas também retrata aqueles momentos de exageros tão característicos nossos.

Além disso, controla a narrativa por meio da composição dos quadros, principalmente dando destaque a Hideo em que, às vezes, é o único elemento da área. E, mesmo assim, com sua expressão corporal, ele preenche toda a mensagem que é passada na narrativa. Algumas vezes em ângulos inusitados causando estranheza, outras com repetições, criando uma dancinha esquisita, troncha, engraçadinha, que diz muito de Hideo. E quando ele não é o único elemento do quadro, podem existir algumas informações importantes ou interessantes espalhadas pela região, prontas para serem descobertas.

I Am a Hero hideo danca

Com a narrativa gráfica ágil, a leitura ficou clara e complementou essa sensação de ler algo aprazível, mas incômoda. E que não se sabe o que é até chegar ao final desta edição. Inclusive, um alerta: não folheie a obra. As últimas páginas são incríveis.

I Am a Hero 3

A série foi publicada no Japão entre 2009 e 2017, foi indicada três vezes ao prêmio Manga Taisho Award e, em 2013, ganhou o prêmio de melhor mangá do Shogakukan Manga Award.

A edição em formato 13,7 x 20 recebeu um bom acabamento com capa cartonada fosca, aplicação de verniz localizado, orelhas, miolo em offset 90 e algumas folhas coloridas, totalizando 248 páginas.

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