Bizarro, pra dizer no mínimo.
Em um movimento extremamente mal planejado e recheado de falta de noção, a Wales Interactive lançou e rapidamente apagou o trailer de um jogo em FMV (full motion video, um estilo em que o jogo reproduz cenas gravadas anteriormente de acordo com as escolhas do jogador) chamado Gamer Girl. Nesse “jogo”, o jogador teria a função de moderar o chat do canal de uma streamer chamada “Abicake99”, interpretada por Alexandra Burton. Além de banir espectadores que fizessem comentários inadequados e aumentar o número de inscritos, o trailer deixa claro que alguma coisa perigosa está no caminho da streamer, e que o moderador deverá ser capaz de “equilibrar suas transmissões e o drama de sua vida” – e o trailer parece terminar com ela sendo atacada em sua vida real.
Se você tem muita tolerância para engolir lixo, pode assistir o tal trailer excluído no tweet abaixo:
the official PlayStation account released a trailer for a new FMV game before quickly deleting it
i present to you: GAMER GIRL pic.twitter.com/GF477143nF
— Rod Breslau (@Slasher) July 17, 2020
De acordo com os desenvolvedores, em uma sequência de tweets defensivos publicados na última quinta, o jogo deveria mostrar como Abi “enfrenta os trolls e – supera – os personagens tóxicos em suas transmissões”. Eles disseram que é uma história sobre “empoderamento”. Exceto que é muito comum que, quando um grupo tenta “alertar” sobre experiências traumáticas que nunca enfrentaram, o resultado normalmente é colocar o trauma como entretenimento sem oferecer nenhum comentário, crítica ou análise relevante sobre o tema.
i don't _really_ want to seriously comment on the gamer girl thing b/c I know everyone else already is but:
the classic problem with 'empathy games' is that it always ends up being "this game is interesting to nonmarginalized ppl and traumatizing to marginalized ppl"
— Aura???? (@MOOMANiBE) July 17, 2020
Trad.: [eu não quero realmente comentar algo sério sobre o gamer girl porque eu sei que todo mundo já fez isso, mas: o clássico problema com “jogos de empatia” é que sempre acabam se tornando “esse jogo é interessante para pessoas não marginalizadas e traumatizante para pessoas marginalizadas”]
E ah, se você ainda está curiosa se alguém envolvido no desenvolvimento do jogo possui experiência com esse tipo de toxicidade enfrentada por jogadoras e minorias diariamente, bom…
Went to the website for the company that created Gamer Girl.
This is their team photo.
Now it makes more sense how this messed up game made it into production. pic.twitter.com/YwietsHVAy— Ani-Mia (@AniMiaOfficial) July 17, 2020
Trad.: [Fui até o site da empresa que criou Gamer Girl. Essa é a foto da equipe. Agora faz muito mais sentido como esse jogo perturbador chegou a ser produzido.]
Quando um monte de homens brancos se reúne para decidir o que é ou não “empoderador” para mulheres, esse é o maior sinal vermelho que você pode encontrar. O jogo credita a Burton como escritora porque suas respostas são improvisadas, o que é ótimo em termos de expressão criativa, mas não afeta de maneira alguma o enredo do jogo ou a forma como o trauma é explorado.
O jogo acaba sendo uma fantasia de poder masculino em que você começa como o moderador de uma streamer e acaba por decidir o que ela deve ou não fazer em sua vida cotidiana, até chegar ao ponto em que deve proteger a vida dela. É perturbador.
E isso é algo ainda mais vergonhoso porque o game surge em um momento que a indústria de jogos está passando por seu próprio movimento de exposição de abusos por figuras de poder, uma espécie de #MeToo próprio, com dúzias de desenvolvedoras, streamers, influenciadores, entre outros, sendo responsabilizados por seu comportamento abusivo e predatório.
love 2 monetize women's trauma, esp after a big industry metoo moment
— Reb Valentine (@duckvalentine) July 17, 2020
Trad.: [wow, esse trailer de Gamer Girl é… não. amo monetizar o trauma de mulheres, especialmente após o grande momento MeToo da indústria]
Ainda bem que o trailer foi retirado das redes sociais, mas sinceramente toda a produção deveria ser descartada… Na verdade, isso nunca deveria ter sido produzido, especialmente por essa equipe.
Fonte: TheMarySue
Débora é musicista, professora de artes, pesquisadora de sociologia de gênero. Autoproclamada otaku-não-fedida e gamer casual. A alcunha de Liao veio de um site aleatório de geração de nomes japoneses (Liao é chinês, mas tudo bem).