Além de ter Rosamund Pike, maravilhosa, como sempre.

Alerta: o post abaixo contém spoilers do filme!

No início de Eu Me Importo, do roteirista e diretor J. Blakeson, a câmera se amplia sob Marla Grayson (Rosamund Pike), que trabalha como uma guardiã legal de idosos. Loira, linda e, claro, de pele de marfim, vemos ela ser levada ao tribunal pelo filho de um de seus clientes, que afirma que Marla “sequestrou” sua mãe, declarando a senhora como falsamente como mentalmente incapaz e vendendo sua casa e carro, ao mesmo tempo lucrando com sua suposta incapacidade e também de impedindo-o de visitá-la. Ele está perturbado, desesperado e ninguém está comprando a narrativa que ele está vendendo. Marla está muito ciente disso. Sua boca se curva em um sorriso e seus olhos se arregalam em uma demonstração de inocência chocada. Ela refuta suas afirmações, insistindo: “Cuidar é meu trabalho. Isso é o que eu faço o dia todo, todos os dias: eu me importo. Eu cuido daqueles que precisam de proteção contra a apatia, seu próprio orgulho, seus próprios filhos”. Rápida e facilmente, ela se pinta com a imagem de uma salvadora benevolente – uma santa, até – e o juiz sorriu de volta, comprando sua história totalmente. Ela está, ao que parece, apenas tentando prestar um serviço.

Naturalmente, Marla ganha o caso e, quando ela sai do tribunal, com os saltos batendo, o filho a segue, gritando repetidamente “vadia” para ela, como se estivesse xingando um cachorro de rua. “Eu espero que você seja estuprada, eu espero que você seja assassinada, e eu espero que você seja morta” ele deixa escapar enquanto a centímetros de distância do rosto dela, com saliva voando pra todo lado. De repente, Marla arranca seus óculos escuros de grife, expondo uma disposição marcadamente diferente daquela que ela tinha apenas alguns momentos atrás no tribunal. Ela dá um passo à frente, chegando mais perto do que ele ousou, olhando para baixo com seus 15 centímetros adicionais de confiança e pergunta: “Dói mais porque eu sou uma mulher? Porque você foi espancado tão fortemente lá por alguém com uma vagina? Ter um pênis não o torna automaticamente mais assustador para mim, muito pelo contrário. Você pode ser um homem, mas se algum dia ameaçar, tocar ou cuspir em mim novamente, vou agarrar seu pau e suas bolas e vou arrancá-los”.

É neste olhar aguçado e nesta afirmação mais afiada que encontramos a verdadeira Marla, que, ao que parece, fez carreira drenando as economias (e a dignidade) de seus muitos clientes idosos (a maioria brancos), incluindo a mãe desse homem. Interpretada por Rosamund (que percorreu um longo caminho desde as bochechas rosadas de Jane Bennet em Orgulho e Preconceito, de 2005, até seu extremo oposto em Garota Exemplar, de 2014), Marla é toda arrojada com seu corte de cabelo chanel, ternos elegantes e a atitude de “vá se foder”. Ela é uma “deusa fria”, desenhada de forma semelhante à personagem Tracy, de Grace Kelly, em Alta Sociedade (1956). Apesar de suas falhas e do fato de agora sabermos que Marla é uma golpista profissional, não apenas acredito em suas palavras, mas me sinto revigorada por elas. Ela é o tipo de mulher que eu seguiria numa batalha. O assunto inevitável de um meme “deixaria ela pisar em mim”. E isso é provável porque eu não sou um homem, especialmente aquele que ficou pálido e com o rosto impassível quando ela colocou os óculos de volta e gentilmente se despediu dele.

Eu vi rostos semelhantes em outros lugares recentemente, em Devorar (2019), O Homem Invisível (2020) e A Caçada (2020). Cada um desses filmes apresenta uma mulher foda que parece estar vulnerável, mas que está longe de ser uma coitada desamparada. Vejam, por exemplo, Cassie (Carey Mulligan) em Promising Young Woman (2020), da diretora Emerald Fennell, que passa as noites fingindo estar perigosamente embriagada e seduzindo “caras legais”. Isto é, antes que ela revele que está totalmente sóbria enquanto cobra uma vingança calculada pela agressão sexual de sua melhor amiga. São nesses momentos – quando cada um deles acreditava que ela estava bêbada demais para dizer ‘não’ às suas investidas, mas que então se senta abruptamente reta, com os olhos claros e sorrindo – que esses homens são atingidos por um choque estupefato e um novo tipo de terror. É aquilo que Margaret Atwood notoriamente alertou em O Conto da Aia (2017), mas em uma reversão satisfatória:

Os homens têm medo que as mulheres riam deles. As mulheres têm medo de que os homens as matem.

Nesses momentos, vemos que o terror deles, com a perspectiva de que estão prestes a perder a vida (e tudo o mais no pacote) para uma mulher, dentre todas as pessoas. Oh, que coisa horrível.

Cassie em Promising Young Woman

Cadelas em pele de cordeiro, essas personagens são conhecidas por enganar os outros, fazendo-os acreditar que são inocentes, doces e agradáveis, mascarando sua personalidade fria e conivente. Considere a maneira como Marla fala com seus clientes lucrativos como se eles fossem crianças, doces açucarados, levando-os a acreditar que talvez tenham realmente perdido o juízo. Enquanto isso, ela ri do fato de que “quase nenhum deles briga” sempre que ela chama para trancá-los; ela acha engraçado que “no fundo, a maioria de nós é fraca, dócil, com medo”. O problema é que Marla não é fraca – até o momento em que ela encontra uma nova vítima, na forma da doce Jennifer Peterson (Dianne Wiest), que não é a vítima fácil que Marla suspeitava que seria. Quando um advogado (Chris Messina) vem pedir a defesa de Jennifer e, pouco depois, outro indivíduo misterioso, interpretado por Peter Dinklage, aparece, de repente parece que os esquemas de Marla foram descobertos. Mas ela se recusa a perder, muito menos para os homens. A perspectiva de abandonar um estratagema tão lucrativo traz um raro medo aos olhos dela, tudo enquanto estava nos braços de sua namorada latina, Fran (Eiza González) – embora a ideia de garantir seu investimento e fazer ainda mais a deixe visivelmente gananciosa.

Um ode às lésbicas malvadonas.

É nesta conjuntura que nos perguntamos como Marla se tornou assim. Eu Me Importo opta por não examinar quaisquer respostas potenciais, embora aprendamos que ela não se importa com sua mãe e ela não cresceu com dinheiro, o que a deixou “fraca, obediente, com medo” uma vez, mas nunca mais. “Não existem pessoas boas” – ela avisa os espectadores. “Eu costumava ser como você, pensando que trabalhar muito e jogar limpo levaria ao sucesso e à felicidade. Não importa. Jogar limpo é uma piada inventada pelos ricos para manter o resto de nós na pobreza. E eu tenho sido pobre – isso não combina comigo. Porque há dois tipos de pessoas neste mundo: as pessoas que recebem e as que retiram. Predadores e presas. Leões e cordeiros. Eu não sou um cordeiro, sou uma porra de uma leoa”. Absolutamente, ela é mesmo. No entanto, no controle de aço de Marla sobre esta vida, parece que ser uma leoa não é a escolha que ela insiste que é, mas algo que ela foi forçada a ser a fim de agarrar seu caminho até o topo. Cassie de Promissing Young Woman também está desesperadamente atrás desse poder e controle, e ela prova ser mais uma vigilante do que uma vilã.

Ambas as mulheres são brancas, bonitas e movidas por uma fúria incessante e incandescente. Mas enquanto Cassie busca vingança por aqueles que injustiçaram a pessoa mais próxima de sua vida, Marla quer vingança para si mesma, criando um ethos mais obscuro.

Mulheres violentas e narrativas de vingança de estupro não são novas, mas o cinema ofereceu amplamente femme fatales fetichistas, super-heroínas bidimensionais e os poucos torturados no centro de filmes do tipo exploração erótica, literalmente fatiando os objetos de sua luxúria.

Como exemplo disso, vejam Grave (2016), Anticristo (2009), Desejo e Obsessão (2001), Audition (1999). Lisbeth Salander (Rooney Mara), Furiosa (Charlize Theron), Cersei Lannister (Lena Headey), Beatrix Kiddo (Uma Thurman) e a amada Amy Dunne da própria Pike são as que mais se aproximam desta nova raça de personagem feminina. Ainda assim, com todas essas variações, ainda existe uma sensação de que uma mulher raivosa que é capaz de causar dor e dominar seus colegas masculinos é surpreendente e, portanto, de alguma forma, um tabu. Mas Marla e Cassie usam o olhar masculino a seu favor enquanto seduzem ou roubam, sem se desculpar e sem medo de parecer amargas, egoístas, estridentes ou levar as coisas “longe demais”. Por que as duas existem em um mundo onde tudo já está uma merda, quão pior pode ficar?

Essa crença lhes concede uma sede de sangue insaciável e niilista. O que importa, elas parecem dizer, quando os ricos só ficam mais ricos, os que estão no poder ficam mais poderosos e a verdadeira justiça se esquiva? Em comparação com a violência contínua contra as mulheres em todo o nosso mundo, ficcional ou não, ser uma vadia – especialmente sendo branca – dificilmente parece grande coisa. Na verdade, parece ser a forma ideal de conseguir o que se deseja, mesmo que, em sua anarquia, não haja redenção a ser encontrada, apenas expressões de raiva e vingança na esperança de garantir uma autopreservação ilusória. É importante notar que as mulheres loiras de olhos azuis que são capazes de usar sua branquitude e feminilidade a seu favor o fazem com apenas uma fração das consequências que as mulheres não-brancas podem enfrentar. Marla e Cassie são capazes de executar seus planos com facilidade e sem suspeita de uma forma que as mulheres negras nunca poderiam.

Cassie pode usar tons pastéis, saias curtas e tranças pra se tornar a sedutora garota branca dos sonhos de um cara legal, enquanto Marla pode ganhar um processo judicial usando um batom vermelho e piscando os olhos graciosamente. Apesar da brancura desses filmes, senti uma satisfação surpreendente ao assistir Eu Me importo e Promising Young Woman.

Afinal, fantasias de arrancar as bolas de um homem depois que ele te chama de vadia, vagabunda ou ambos (com um “louca” opcional adicionado) são universais.

Um grito primal cinematográfico, existe uma catarse visceral em assistir até mesmo a versão mais irreal dessas histórias ganhar vida. Tem algo terapêutico a ser encontrado nesses filmes, onde a lição não é tanto que “o medo te leva a vencer”, como Marla avisa, mas que é bom ser uma vadia e fazer o que você bem entender às vezes. Afinal, os homens fazem isso há séculos.


Texto traduzido e adaptado da Bitch Media.

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