TLOU2 trabalhou a questão de uma forma muito interessante!

The Last of Us II te obriga a jogar com duas personagens: Ellie e Abby – e nenhuma delas possuem muitas qualidades redentoras. A experiência definitivamente foi desconfortável para o jogador, que passou raiva com o nível de egoísmo de cada uma delas. E essa é uma parte essencial do jogo, mas também faz você se questionar: até onde vai a necessidade da redenção?

*** ALERTA DE SPOILERS DE TLOU 2 ***

Ellie

Ellie não é uma personagem agradável. Por mais que você entenda a angústia que ela sentia quando criança, vê-la agora transformar essa raiva em uma autoabsorção destrutiva é doloroso.

Ela exala angústia e egoísmo do início ao fim do jogo. E isso não começou com a morte de Joel. Seus flashbacks revelam o que motiva sua obsessão por vingança: descobrir o que realmente aconteceu no hospital.

Quando Jesse chega para ajudá-la, ela também o manipula. Quando ele descobre que Dina está grávida de seu bebê e sofrendo com enjoos matinais, ele convence Ellie a retornar para Jackson depois de encontrarem Tommy. Porém, quando eles descobrem onde ele está, Ellie se recusa e diz que precisam ir até Abby. Seu objetivo é unicamente matar Abby, como fica claro quando ela responde ao medo de Jesse sobre Tommy correr risco de morte: “ele pode tomar conta de si mesmo”.

Ellie está tão mergulhada em dor, raiva, ódio e culpa que não vê problema nenhum em manipular e mentir para as pessoas ao seu redor, ou colocá-los em perigo.

Quando ela descobre que Dina está grávida, ela fica chateada apenas com o “peso” que isso coloca sobre seus ombros. Esse capítulo do jogo prova que a sede de vingança de Ellie obscurece tudo, inclusive seus sentimentos por Dina. E isso também é provado próximo ao final do jogo quando ela decide abandonar Dina e seu filho para novamente caçar Abby, ainda que mal tenha sobrevivido ao seu último confronto com ela.

Tommy também é destruído pelo desejo de vingança de Ellie. No começo, ele não parece querer revidar, mas por causa da determinação dela, ele acaba aderindo a essa ideia, sendo permanentemente ferido pela sede de vingança. E isso acontece porque Ellie jura que iria atrás de Abby novamente. Ainda assim, quando ela vai, sua motivação não tem nada a ver com a promessa para Tommy.

Ela chega ao ponto de lutar contra uma multidão apenas para resgatar Abby, para que elas pudessem lutar no mano a mano. Quando ela finalmente percebe que nada disso mudaria alguma coisa e que a sua dor vinha do sentimento de culpa por ter ressentimentos com Joel – só quando ela resolve poupar a vida de Abby ela entende que não existe nenhum consolo, nada a permitiria mudar o relacionamento que ela tinha com Joel. Mesmo a forma como ela poupa Abby foi egoísta.

No final das contas, ela perdeu uma oportunidade de ter uma vida com Dina e JJ. Dina deixa claro que não esperaria por ela, e o retorno de Ellie para uma casa vazia prova que Dina não havia mentido. Ela perdeu sua redenção, sua oportunidade de seguir em frente e por isso acaba tendo de deixar essa casa para trás. Talvez para seguir até Jackson e conferir se Dina estaria por lá. Talvez para aprender a viver com suas memórias em reclusão.

O assassinato de Joel faz com que Ellie tenha ressentimentos com o grupo de Abby. E mesmo que ela não queira reconhecer, eles não são tão diferentes dela assim. Quando Jesse e Dina questionam se Abby e cia eram realmente os vilões da história, Ellie tenta ignorar e permanece agarrada em sua raiva, ignorando também o fato de que Abby poupou tanto ela quanto Tommy quando poderia ter matado ambos e acabado com todas as pontas soltas com chances de resultar num revide.

Abby

A virada de jogar como Abby nos força a entender suas motivações. Porém, ela é tão egoísta quanto Ellie na maior parte do jogo. Sua jornada para matar Joel obscurece todos os outros aspectos da sua vida, custando seu relacionamento com Owen. Sua obsessão com o treinamento para efetivamente rastrear e matar Joel eventualmente a afasta de Owen. E apesar de Manny, Mel e o próprio Owen também terem interesse em vingança, ele entende que continuar vivendo é mais importante.

Anos após o relacionamento deles terminar, Abby finalmente consegue uma pista sobre Joel e pede que Owen se junte ao grupo. Depois de descobrir que Mel está grávida de Owen, a reação de Abby é similar a de Ellie com Dina: ela se irrita que isso possa atrapalhar seu plano de vingança. Então ela vai por conta própria. Quando ela percebe quem é Joel e o que ele representa, em vez de matá-lo imediatamente, ela usa ele e Tommy para conseguir sobreviver e retornar para seu grupo. E então, uma vez que se sente a salvo, ela parte para sua brutal vingança.

Existe um limite para o quanto ela arrisca a própria vida em busca de vingança, mas arriscar a vida dos outros não parece ser um problema.

Sua vingança é SUA vingança. Não é de ninguém mais. E isso fica claro quando Abby poderia facilmente ter colocado uma bala na cabeça de Joel e resolvido tudo. Mas, em vez disso, ela manda Mel fazer um torniquete na perna dele, o que aterroriza Owen e Mel. Eles aceitavam se vingar, mas fica claro pra eles que, para Abby, vingança não significava apenas matar a pessoa que assassinou seu pai.

Abby decide poupar Ellie e Tommy por causa de seu egoísmo – tudo era apenas sobre Joel – mas essa escolha coloca todos os seus amigos em risco. Esse é um exemplo de um tema recorrente de The Last of Us II: o descuido com a antecipação de eventos. Joel não esperava vingança, ainda que devesse. Abby não esperava vingança, ainda que Ellie tenha dito em alto e bom tom que iria matar todos eles.

Abby, sem querer se sentir como um monstro, mas sim como uma vingadora, escolheu deixar Tommy e Ellie vivos. E os resultados dessa escolha trazem consequências muito maiores para ela.

Depois de completar sua vingança, Abby se reaproxima de Owen, ainda que Mel esteja grávida dele. Abby começa a se concentrar em não se sentir uma pessoa terrível, ainda que seja incapaz de tomar decisões corretas. Tudo sempre se resume sobre os sentimentos dela. E é por isso que ela não consegue simpatizar com o desconforto de Mel, que a viu matar um homem de forma extremamente violenta. Abby não acha que passou dos limites e sente que está sendo injustamente julgada pelo que fez, e discute com Mel por causa disso.

Até mesmo a forma como ela ajuda as duas crianças, Lev e Yara, parece vir de uma necessidade de se sentir bem, de querer sentir que fez a coisa certa. Talvez, de forma subconsciente, ela saiba, mas se nega a reconhecer que passou dos limites no assassinato de Joel. E por isso fica ativamente tentando provar que não é egoísta. Novamente, isso vem de uma vontade individualista: fazer a coisa certa só pra se sentir bem.

Suas escolhas ao poupar Ellie e Tommy, seguindo em uma missão com Lev e Yara, causa as mortes de Owen, Manny, Mel e todos envolvidos no extermínio de Joel. Abby não é uma boa pessoa. E ela continua sendo egoísta durante todo o jogo. No episódio do seu primeiro embate com Ellie, Abby não hesita em nenhum momento na ameaça de cortar a garganta de Dina, mesmo sabendo que ela está grávida. Podemos dizer que quem conseguiu impedí-la na prática foi Lev, mas na verdade Abby só parou porque sabia que se fizesse aquilo precisaria confrontar a sua natureza de novo, assim como seu interminável desejo de se sentir uma “boa pessoa”.

Posteriormente, a sua natureza egoísta novamente aflora quando ela arrasta Lev para procurar vaga-lumes, colocando ambos em perigo. Ela chega até a passar suas informações para um estranho no rádio, fazendo com que os dois sejam capturados.

O jogo nos faz enfrentar uma grande quantidade de desconforto, tentando atingir a simpatia do público pela Abby, o que no final das contas não é muito possível ou, ao menos, compreensível se não for sucedido.

O que faz TLOU2 ser tão bom é que ele vai muito além disso, fazendo com que nós percebamos que nem Abby nem Ellie são pessoas altruístas. Que, muitas vezes, os personagens fazem o que fazem por não ter escolhas quando a sobrevivência está em jogo – e que os jogadores talvez não fariam muito diferente se estivessem no lugar.

E alguns dos personagens secundários são muito altruístas, o que deixa ainda mais gritante o contraste entre eles e as protagonistas. E isso é o que torna o jogo único. O desconforto e a angústia são permanentes. Isso te marca.

E não é exatamente isso que os melhores jogos devem fazer?

Aliás, a Flávia Gasi inclusive já falou sobre o caso da redenção no nosso canal do YouTube:

E um vídeo maravilhoso de Análise do Imaginário do Joel:

Assistam!!


Texto traduzido da Nerdist.

Leia mais sobre The Last of Us aqui no site!

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