Ah, Crepúsculo…

Muitos acreditavam que a franquia sobre um amor literalmente imortal entre a encarnação humana da angústia adolescente chamada Bella e o tão desnecessariamente torturado vampiro Edward seria eternamente um fardo para as garotas e mulheres feministas ao redor do mundo… Pelo menos até o surgimento de outra franquia que fez com que Crepúsculo parecesse um paraíso progressista.

Isso pode explicar o porquê de a saga Crepúsculo continuar sendo uma fonte de fascinação, especialmente depois de o lobisomem Jacob ser jogado na trama, transformando o romance em um triângulo amoroso. Ainda que o triângulo seja isósceles e Jacob esteja isolado na ponta mais distante. Que seja. Não podemos deixar de nos fascinar por uma série, que de forma tão refinada e requintada conseguiu se ligar às inseguranças femininas, com uma heroína que quase não possuía nenhuma característica ou qualidade notória – transformando-a em uma perfeita tela em branco para que as garotas se projetassem, por mais (reconhecidamente) problemática que a “história de amor” de Bella possa ser.

Apesar disso, rumores sobre um relançamento surgem em massa quase todo ano, e levando em consideração a súbita “repopularização” da série na internet, aparentemente uma continuação nas telonas não parece algo tão distante. Assim como a graphic novel de Watchmen – que continuou por diversos outros meios – uma vez afirmou: “Nada tem um fim. Nada nunca tem um fim”. E essa afirmação demonstrou ser bastante presciente, e é algo meio que estabelecido hoje em dia que obras populares de ficção nunca chegam realmente ao fim. Elas entram em hiato. Existem prequels, sequências, sequências para as prequels, reboots e reboots de reboots. A própria autora, Stephanie Meyer, já escreveu uma versão com inversão de gêneros da história, além de uma história inteiramente escrita pelo ponto de vista de Edward.

Então, uma reedição de uma franquia popular não seria novidade alguma, e poderia trazer um novo olhar sobre a obra. Talvez uma mudança de foco para uma personagem que talvez seja a única razão que ainda traz alguma alegria para algumas de Crepúsculo.

Sim, estou falando de Alice Cullen, que é a personagem que mais demonstrou personalidade desde o momento em que a conhecemos, tanto nas páginas quanto nas telonas. De suas características de fada – como sua baixa estatura e cabelos escuros e espetados – até sua personalidade otimista e profundamente carinhosa, é impossível não ceder ao seu charme.

Apesar de a franquia de onde ela surgiu ter sido justamente criticada por glorificar abusos por meio do relacionamento absurdamente tóxico entre a adolescente Bella e o vampiro Edward, que tentava convencer ao público de que se tratava da história suprema de amor, a personagem menos conhecida é aquela que pode ser considerada um modelo de comportamento e heroína feminista. Uma mulher cuja agência nunca foi alvo de dúvidas e que repetidamente salvou a trama risível.

E não é à toa que a personagem é uma das favoritas dos fãs. Diferente de Bella, que foi feita para ofender o mínimo possível, Alice foi escrita como alguém além de seu tempo. Enquanto Bella tenta se diferenciar ao desdenhar da feminilidade tradicional, mesmo quando incorpora as expectativas mais conservadoras, Alice não se deixa afetar por seu amor pela moda, por compras e por planejar festas. Ela se joga no planejamento do casamento de Edward e Bella com vontade e insiste em rechear o armário da protagonista com roupas incríveis que certamente serão desperdiçadas.

Em um enfrentamento inovador a vários estereótipos ligados a “garota da ação”, a feminilidade de Alice não diminui a sua força. Ela é uma das melhores lutadoras de sua família e seus poderes de precognição são complexos e complementados por sua empatia, que por vezes servem como pontos importantes da trama e permitem a ela salvar os seus entes queridos, ainda que de si mesmos.

Em contraponto à sua abertura, Alice era inicialmente uma espécie de enigma, incapaz de lembrar de sua vida antes de se tornar uma vampira. Uma personagem tende a minguar quando o mistério de suas origens é revelado, mas Alice desafiou essas expectativas novamente no momento em que sua popularidade aumentou.

Nascida com o poder da predição, em 1901 no Mississippi, ela foi alvo de ostracismo em sua comunidade por causa dos seus poderes, eventualmente sendo trancafiada em um hospício por seu pai. Depois disso, ela entendeu que ele havia matado a sua mãe e que estava planejando fazer o mesmo com ela. Depois de se tornar uma vampira, ela se viu sozinha, sem memórias. Mas um pouco por causa de suas habilidades de ver o futuro, ela conseguiu se virar por conta própria, se recusando (na maior parte das vezes) a beber sangue humano, enquanto construía um relacionamento amoroso e saudável com Jasper, até encontrar os Cullen.

Em outras palavras, Alice era uma jovem e poderosa mulher, que muitos tentaram silenciar, mas que ainda assim encontrou amor e felicidade não por abraçar o estereótipo da “garota durona”, se tornando cínica e torturada, mas sim por meio da doçura e otimismo. E bem, visões do futuro também ajudaram, mas deu pra entender.

Mas falando a verdade, quem não iria preferir passar tempo com Alice do que com Bella? As coisas seriam muito mais interessantes que estivéssemos focadas em Alice quando ela rastreou Bella para salvar a sua vida em Crepúsculo. Ou mesmo em Lua Nova quando ela tentou descobrir mais sobre a sua vida humana, desenvolveu um plano para salvar Edward, e então Bella (de novo, dessa vez dos Volturi); ou quando lutou contra vampiros recém-nascidos e enlouquecidos em Eclipse – salvando a Bella, de novo. É um padrão. E finalmente a sua jornada em Amanhecer, que basicamente resolveu os problemas de todo mundo – inclusive garantindo que o filme não consistisse apenas em uma reunião de elenco conversando, uma vez que a visão do futuro de Alice foi o motivo pelo qual a grande batalha final da trama acabou sendo na verdade uma enganação.

E os fãs concordam com tudo isso. Quando o “Storytellers: New Voices of the Twilight Saga” (um concurso para que cineastas mulheres pudessem criar seus próprios curtas no universo Crepúsculo) foi anunciado, Alice foi a grande vencedora, com três dos sete filmes focando em aspectos de sua vida, dos momentos no hospício até seu primeiro encontro com Jasper.

A tão conhecida saga apenas teria a ganhar ao reimaginar algo com o potencial de mudar a sua imagem. Uma pesquisa rápida no Google mostra facilmente o quão profunda é a relação de amor e ódio dos fãs com a série. É possível encontrar não apenas um mergulho nas cenas mais marcantes da série e fatos desconhecidos, mas também uma enorme quantidade de listas de pontos negativos e informações que comprovam o quão horrível é o triângulo amoroso da série. Você vai encontrar listas de coisas horríveis feitas pelo Jacob, de coisas horríveis que Edward fez com a Bella e vice-versa. Para uma série que afirma ter dado tantos finais felizes aos seus personagens, na verdade parece que Crepúsculo não tem muitos vencedores não.

E será que precisamos de mais da mesma história, que já foi explorada de forma tão obsessiva? É claro que não. Mas se precisamos aceitar que nada realmente chega ao fim, pelo menos um cenário pode ter o potencial de entregar uma história interessante e de levar uma série problemática à era do #MeToo.


Texto traduzido e adaptado do TheMarySue.

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