Problemas de representação indígena, sexualização e outras polêmicas bem sérias.

Yara Flor chegou como um inesperado presente: ter não apenas uma heroína brasileira no panteão da DC como também uma amazona indígena pra ser quem, no futuro, receberá o manto da icônica Mulher Maravilha, significaria muito em termos de representatividade latina, mas isso só se a DC Comics conseguisse acertar os pontos. E em tempos onde uma diversidade autêntica e fidedigna começa a ter crescente importância para todas as mídias de entretenimento, acertar na nova Wonder Girl era essencial.

Infelizmente, isso não aconteceu. Honestamente, sem surpreender muita gente, já que a obra foi anunciada como responsabilidade de uma artista estadunidense – uma mulher branca e estrangeira. O blog da DC comunicou que a HQ de Yara Flor teria Joëlle Jones como escritora e artista, Jordie Bellaire como colorista, lettering por Clayton Cowles, e uma capa alternativa da artista brasileira Bilquis Evely. Fora esta última, que nem mesmo entrou para os créditos e agradecimentos das duas edições lançadas (sua capa está programada para ser publicada apenas em 18 de maio), não deu nem cheiro de ninguém brasileiro creditado por auxiliar, dar consultoria ou algo parecido.

Mas por que consultoria? No geral, quando a representação de brasileiras cai em mãos estadunidenses, nós todas já sabemos os resultados mais comuns de cor: estereótipos de sobra, a óbvia sexualização do corpo brasileiro e, claro, muitas vezes alguns resquícios de racismo velado. Outras vezes, nem tão velado assim.

Exatamente levando isso em consideração, ter alguém brasileira dando consultoria teria resultado num evidente distanciamento de alguns dos problemas que falaremos abaixo neste artigo. Quem dirá, ainda melhor e absurdamente mais importante, se a DC tivesse considerado algum esforço em contratar uma consultora indígena, que traria um diferencial profundo para como a cultura indígena brasileira foi retratada nos quadrinhos. E antes que alguém reclame sobre qualquer aspecto desse argumento, levem em consideração que até mesmo a Disney tem se empenhado nesse sentido. Em Frozen 2, a empresa trabalhou diretamente com o povo indígena Sámi, para garantir que seus personagens fossem culturalmente sensíveis.

E fica aqui a dica: se tem algo que a HQ da nova Wonder Girl não é, nem de longe, é culturalmente sensível.

Para começar minha análise do quadro geral sobre a recepção do quadrinho, avaliei o que a mídia gringa viu de problemas (com exemplos da Screenrant e da Polygon para exemplificar) com a nova HQ (pertencente à saga “Future State”), que atualmente tem dois volumes lançados. É perceptível que eles, geralmente, só apontam para a personalidade impulsiva da heroína e como suas ações já geraram ou têm potencial de gerar consequências razoavelmente graves.

O problema é que nenhuma dessas críticas jamais teria o peso de alguém que é diretamente influenciado pela forma como a personagem é representada na HQ: a mulher brasileira e, acima de tudo, a mulher brasileira indígena.

Mas vamos começar pelo começo.

O PROBLEMA DO CONCEITO “ORIGINAL” DE PERSONAGEM

O que fica claro nos quadrinhos, logo de início, é que Yara Flor é indígena. Além disso, ela foi apresentada pela autora como filha de uma amazona e de um “deus rio indígena”. Suas características físicas, portanto, teriam de ser indígenas. E foi a atriz e ex-modelo cearense Suyane Moreira, de 37 anos, quem obviamente serviu como inspiração para elas. Nordestina e descendente dos indígenas Cariris, seu perfil parece perfeito para emoldurar a heroína. E a semelhança entre suas características e as da personagem não são meras coincidências:

Imagem: DC/Reprodução: Instagram

O problema nesse primeiro ponto é que a atriz disse que ficou surpresa com a revelação de que sua imagem inspirou a criação de Yara Flor. Em suas redes, Suyane disse estar feliz e honrada por servir de inspiração para a personagem, mas afirmou também que só ficou sabendo da informação por um fã.

De acordo com o Amazonas Atual, o que houve foi, especificamente:

A notícia de que brasileira inspirou a personagem Yara Flor foi dada por um fã. Marcus Lucon entrou em contato com a autora Joëlle por meio do Instagram. Ele mandou fotos da brasileira e disse que achou ela parecida com as imagens divulgadas da nova Mulher-Maravilha. “Isso é tão legal! Eu realmente a usei como ponto de referência quando desenhei a Yara!”, respondeu Jones.

E esse primeiro ponto já deixa um pequena pergunta incômoda a se fazer: a DC faz seus designs de personagem escolhendo alguém, mas nem se dá ao trabalho de informar essa pessoa que está usando sua imagem em um produto comercial? Suyane não merecia nem mesmo ser consultada? A resposta é, obviamente, sim, ela merecia. E eu levo isso em consideração porque, novamente, diz respeito ao uso de imagem dela, alguém cujas profissões inclusive dependem justamente disso.

É ainda pior saber que não foi ninguém da equipe da empresa que contatou a atriz pra dar a notícia, mas um fã. Que só depois disso é que a artista da HQ admitiu tê-la usado como referência. E sinceramente, é inevitável sentir um pouco de frustração com essa falta de sensibilidade, e não considerar isso como um erro pouco profissional.

Para O Globo, Suyane disse que tentou conversar com a artista, mas sem conseguir detalhes sobre nada do que gostaria de saber:

“Mandei uma mensagem para a autora de agradecimento. Ela curtiu, mas ainda não conversamos sobre o assunto. Quero saber os bastidores dessa história, como fui descoberta. Acredito que tenha sido no Google”.

Além disso, outra personagem do segundo volume do quadrinho também foi identificada com características extremamente próximas de uma mulher indígena brasileira. Reparem abaixo:

Imagem: Joëlle Jones/DC Comics

Agora comparem a personagem acima, chamada na HQ de Potira, com a artista We’e’ena Tikuna:

Imagem: Reprodução: Facebook/DC
Vai em GIF quando faltam palavras…

Enfim.

Suyane e We’e’ena são mulheres maravilhosas – trocadilho intencional aqui – e vê-las recebendo créditos diretos (obviamente, inclusos na HQ), teria sido uma experiência muito mais gratificante e muito mais respeitosa.

É compreensível que o design de personagens parta de um princípio para construir suas características mais marcantes. Só que uma coisa é ter ideias variadas de referências para criar um personagem original, e outra completamente diferente é usar alguém real como modelo e não creditá-la no processo. Tanto Yara Flor quanto Potira têm características demais de Suyane e We’e’ena para serem vistas apenas como uma “homenagem”. O uso da imagem delas dessa forma é só mais um tipo de violência que elas sofrem.

Cabe aqui um adendo para deixar claro que infelizmente esse problema é uma prática comum nas edições de HQ, e a crítica não é exclusiva à esta artista.

De qualquer maneira, uma heroína brasileira merecia mais que uma pesquisa rasa de imagens do Google. Literalmente.

Exemplo de pesquisa no Google com as palavras chave “indígena, brasileira, modelo”. Reparem também que são fotos que aparecem logo na primeira linha da pesquisa de imagens.

O PROBLEMA DA SEXUALIZAÇÃO

Quase ninguém em sã consciência espera, em pleno 2021, com todas as discussões sobre representação midiática de gênero que já tivemos ao redor do mundo todo até agora, que uma personagem feminina ilustrada por uma mulher vá chegar próximo das personagens dos quadrinhos antigos: aquelas que eram um festival de male gaze, numa lógica irrealista que misturava roupas à vácuo, ausência de órgãos internos, coluna vertebral elástica, seios antigravitacionais e hiperlordose lombar. Problema que inclusive seguiu quase toda a carreira de heroína da própria Mulher Maravilha.

Felizmente, esse não é exatamente o caso da Yara Flor. Jones desenhou a personagem como uma mulher perfeitamente capaz de respirar enquanto usa seus trajes de super-heroína. Suas habilidades como ilustradora são inegáveis.

Imagem: Joëlle Jones/DC Comics

Ainda assim, existe um ponto problemático aqui. E é onde deixamos de falar sobre o design da personagem em si, e passamos a comentar sobre como ele é usado em perspectiva dentro dos quadrinhos.

A função desse tópico então é trazer um panorama horizontal sobre a imagem da mulher latina, inclusive da brasileira, na mídia internacional. Para explicar esse ponto, temos que trabalhar o problema da representação midiática da mulher brasileira, especialmente em Hollywood, e como essa representação acaba moldando o imaginário de pessoas estrangeiras sobre o corpo físico e a personalidade da mulher brasileira. De forma ainda mais grave, a ser debatido mais adiante, o corpo “exótico” e a natureza “selvagem” da mulher indígena.

Tomei como base para esse estudo um vídeo contendo uma explicação muito bem feita de um canal no YouTube, que é reconhecidamente feminista e popularmente famoso por falar sobre tropos femininos no cinema: o The Take. Nele, as duas apresentadoras do canal explicam o tropo da “Spicy Latina“, que pode ser traduzido literalmente para “latina picante” – basicamente, uma mulher “exótica” e de “sangue quente”. A descrição do vídeo introduz o assunto:

The Spicy Latina: Por quase um século, ela tem sido a face sensual da representação latina. O tropo de retratar as mulheres latinas como exóticas e de sangue quente – apaixonadas tanto no amor quanto na guerra – surgiu antes do advento do cinema. Mas mesmo à medida que progredimos em direção a personagens mais iluminados e diversificados em geral, a Spicy Latina permaneceu uma figura típica de Hollywood – uma fonte de risos e luxúria em tudo, de filmes de ação a sitcoms. Aqui está nossa opinião sobre de onde essas latinas ardentes vieram, os equívocos que elas criaram e por que provavelmente deveriam ser extintas.

O debate, trazido no vídeo acima, afirma que mulheres latinas são comumente tratadas pelo cinema norte-americano como voláteis, combativas, traiçoeiras, hipersexuais e fantasiosas. Uma mistura do sinistro e do sensual. Seus corpos são voluptuosos e geralmente sempre à mostra – com altas chances delas aparecerem pouco vestidas ou em algo bem apertado e revelador. Elas têm um temperamento forte e são destrutivas ou violentas quando estão bravas.

No geral, a mulher latina é uma figura que Hollywood usa como estoque para risadas e toques exagerados e perigosos de luxúria, existindo apenas como objeto de tentação proibida para cowboys estadunidenses e outros personagens masculinos parecidos. Normalmente, figuras descendentes de uma paródia.

O vídeo também mostra como atrizes latinas foram individualmente prejudicadas e marginalizadas com esse discurso, com muitas sucumbindo ao alcoolismo e ao abuso de drogas em decorrência do fato de que eram tratadas como comodidades que brilhavam muito, mas por pouco tempo – sendo que só serviam se coubessem dentro do estereótipo da Spicy Latina. Lupe Velez, Estelita Rodriguez, Maria Montez e a brasileira Carmen Miranda servem como amostras para essa estatística, sendo que todas morreram tragicamente, ainda muito novas. A morte de Velez, por exemplo, se deu aos 36 anos, e foi classificada como suicídio.

Hoje, esse estereótipo “evoluiu” até tornar a mulher latina em uma projeção do desejo do homem branco ou em uma criatura que usa de ações maquiavélicas para subir de status – úteis quando invisíveis e vilanizadas quando visíveis.

Esse problema ainda gera uma falta de representatividade latina autêntica, fidedigna e culturalmente sensível na mídia. E na baixíssima presença estatística da mulher latina nessa mídia, causa um alto nível de hipersexualização. Somos transformadas em objetos sexuais e em mero fetiche. Reduzidas ao nosso “apelo sexual”.

E é exatamente essa a impressão que os dois primeiros volumes da HQ de Yara Flor me passaram: ela é uma personagem linda e impetuosa, mas que depende muito de posicionamento estratégico nas páginas para demonstrar seu sex appeal. Aqui entram questões de enquadramento e como, por alguma misteriosa razão, a bunda ou a linha da cintura da personagem sempre têm que aparecer com certo destaque em algum lugar nos quadrinhos.

Confiram abaixo alguns exemplos:

Imagem: Joëlle Jones/DC Comics
Imagem: Joëlle Jones/DC Comics
Imagem: Joëlle Jones/DC Comics
Imagem: Joëlle Jones/DC Comics

Pode parecer bobagem falando assim, já que obviamente mulheres têm bundas e elas vão acabar sendo mostradas em algum lugar eventualmente, desde que as personagens apareçam de costas. O problema é perceber as nuances de como, em praticamente todas as cenas dos dois primeiros volumes da HQ, a personagem é sempre posicionada de forma a dar foco em sua silhueta, nas linhas curvas e “exóticas” de seu corpo. Não chega a ser um caso repulsivo de male gaze, mas ainda é uma forma estrangeira de ver o corpo latino, com efeitos colaterais do male gaze.

É um problema de perceber como as formas da personagem ganham tanta ou mais evidência quanto o desenvolvimento da narrativa.

Impossível falar desse assunto sem tocar na questão da objetificação feminina nos quadrinhos. À primeira vista, essas personagens sensuais podem parecer super-heroínas empoderadoras, mas no final das contas são desenhadas como fantasias masculinas, como se isso fosse uma indicação de poder e força. E Yara Flor herdou vários desses problemas da Mulher Maravilha: o laço, que sempre conteve uma conotação de erotismo, a ponto do criador ter que diminuir as cenas onde Diana amarrava pessoas; sua existência e origem exótica; o tom sexista de seus poderes serem envoltos em controle mental – e assim por diante. Tudo sintetizado nos estereótipos sobre a imagem corporal feminina “ideal”: seios grandes, cintura fina, nádegas tonificadas, pernas longas.

Exatamente por isso, pensando na criação de uma personagem nova que receberia o manto de sua veterana, as coisas não deveriam ter sido um pouco mais diferentes? Já não estava na hora de escritoras e ilustradoras serem melhores que isso? Não era esse o esperado?

Yara não deveria ter sido pensada como alguém numa geração de personagens que servem exatamente para inspirar as pessoas a quem representam diretamente?

Essa ideia de mulheres sendo desenhadas de uma determinada maneira não deveria ter mudado nas mãos de escritoras, ilustradoras, mulheres?

Apesar disso, a maioria das heroínas hoje ainda se encaixa na imagem de uma mulher magra, mas com seios grandes e musculosos, o que subrepresenta bastante a diversidade das mulheres. Com um design óbvio para um público centrado nos homens, este físico poderoso de Yara Flor não foi feito para empoderar as mulheres. É algo que sumariamente ignora o fato que mulheres também leem quadrinhos. 

É triste ser uma mulher brasileira, lendo um quadrinho sobre uma heroína brasileira, sentindo que ela nem de longe foi feita para mim enquanto brasileira.

Além disso, tive que considerar também uma fala de Jones, em entrevista para a Polygon:

Seus trajes, para mim, têm muito poder por trás das silhuetas. Se há sexualidade nisso, ela é dona; é dela. Comecei com essa silhueta, e a partir daí, fui para umas leggings Balenciaga que são totalmente feitas de metal. É um metal dourado brilhante e lindo que me lembrou Barbarella.

Sim, Barbarella, aquela heroína que é possivelmente a mais sexualizada da ficção científica, que é torturada e sentenciada à morte numa “máquina de orgasmo”.

Como diz esse artigo, escrito por Katherine Garcia, uma mulher latina: “É maravilhoso ser considerada sexy, bonita e impetuosa, exceto quando você não tem escolha”. Essa comparação com Barbarella serve como demonstração de qual é a visão (talvez subconsciente) que a autora tem sobre latinas. Esse mesmo exotismo e fetichismo nos transforma em meros objetos, que nos tornam menos humanas e mais como prêmios a serem ganhos e exibidos.

Fora isso, entre outras afirmações do artigo acima citado, é um pouco perturbador perceber a mistura caótica que a artista fez para incorporar “brasilidade” na heroína e em seu quadrinho: um laço da verdade que está mais para laço de gado (boleadeiras, usadas no sul do Brasil por boiadeiros gaúchos para capturar gado, não no norte, no Amazonas, logo, totalmente desconexo geograficamente); um pégaso que se chama Jerry (????); uma mistura sem sentido de “folclore brasileiro” e mitologia grega, ocorrendo bem no meio da Floresta Amazônica – e outros absurdos típicos e esperados de um gringo que acha que entende a língua portuguesa e a cultura indígena brasileira com um pouquinho de esforço (como dá pra depreender do que ela mesma afirmou, em entrevista ao Omelete, onde ela diz pedir ajuda a artistas brasileiros – sendo que, novamente, nenhum deles foi creditado). Em suma, trata-se novamente de uma pesquisa rasa e um caminho de sucesso para a ofensa às pessoas com um pouco mais de senso crítico.

Para piorar, toda essa parte da sexualização faz par com outra parte crucial do estereótipo da Spicy Latina: o temperamento explosivo, o jeito irritante e perigoso – tudo que, pelo visto, é característica inata de Yara.

Ela age como uma adolescente de cabeça quente, é pouco empática, irresponsável e inconsequente. De um jeito curioso, a autora realmente não parece estar ciente do problema, já que, também na entrevista para a Polygon, afirmou que:

Seu amor também é uma característica definidora, diz Jones. “Ela está animada para assumir um papel de heroína – quase excitada demais, um Labrador Retriever animado para estar lá”.

Claro, a comparação desumanizante tinha que ser com um cachorro. Por que é assim que comparamos mulheres “animadas demais”: com cachorros.

Finalizando esse ponto, adiciono outro dado que considero crucial para entender a dimensão da influência que isso gera, algo que a pesquisadora Taylor Turberville debate em seu artigo:

As meninas que compram esses quadrinhos estão aprendendo que “sexo vende” e, se for esse o caso, o consumo dessas imagens “pode internalizar os efeitos” de que “elas precisam ser sexuais para serem poderosas”. Em alguns aspectos, essas imagens são poderosas em mais de um aspecto: não apenas mostram mulheres fortes, mas a maneira como essas mulheres são retratadas parece ter o poder de influenciar as meninas.

Essa limitação na representatividade da mulher latina, que é algo infelizmente bem claro nas páginas do quadrinho de Yara, tem repercussões reais no mundo, com uma influência direta em como essas mulheres se veem,  e também em como elas são vistas pelo mundo.

A sexualização e estereotipação da mulher latina traz ideias internalizadas sobre vestimentas relevadoras e o foco em suas aparências físicas – que por sua vez levam a problemas de ansiedade, autoestima, suposições sobre capacidade intelectual e questões de imagem corporal. 

É extremamente necessário somar a tudo isso mais uma estatística: as brasileiras são as campeãs mundiais quando o assunto é cirurgias plásticas e estéticas, com pesquisas de sobra na internet que comprovam o crescimento obsessivo desses procedimentos.

Essa representação nos quadrinhos apenas perpetua uma falta de respeito e uma desumanização com mulheres latinas. Incentiva a busca por um corpo irreal e ignora nossa diversidade: as muitas formas de existência e identidade das mulheres daqui, nossa enorme variedade e pluralidade de culturas, raças e etnias.

Mas antes que esse discurso, que tem sua importância quando bem colocado, se perca na profusão do que entendemos por “diversidade”, vamos dar nomes aos bois.

OS PROBLEMAS DA REPRESENTAÇÃO INDÍGENA

Aqui é onde as coisas se complicam até entregar o desânimo. Como se não bastasse usar a imagem de indígenas e descendentes sem creditar, os problemas com o ponto da representação indígena são os mais graves da HQ.

O Brazilian Times chegou a resumir o assunto:

No Twitter, os fãs não se mostraram muito contentes com o resultado final da HQ. A maior parte dos comentários se referia à forma como o Deus Tupã teria sido retratado, bem como à representação infiel dada à Caipora, entidade do folclore brasileiro. Alice Pataxó, jornalista e ativista indígena, se mostrou indignada com a forma como a cultura indígena fora retratada na história. “Usam de nossos desejos de representatividade e protagonismo como entretenimento”, disparou ela em um dos seus tweets.

Mas a conversa é muito mais complexa que esse resumo. Até agora, apenas falamos da forma genérica da representação da mulher latina, porque falar da sexualização do corpo indígena é algo mais sério que deve ser considerado com mais cuidado: em questões de representação feminina, a representação da mulher indígena é a mais marginalizada e menos debatida na mídiaInclusive, são raríssimos os estudos nacionais que toquem nessa questão, já que pessoas indígenas quase nunca são escaladas para atuar em filmes nacionais sobre personagens indígenas, por exemplo. De toda forma, isso serve como exemplo para demonstrar como pessoas indígenas são sempre invisibilizadas.

Antes de mais nada, para começar esse debate, acredito que os tweets da Alice Pataxó mereciam ser incluídos aqui por inteiros. Segue a thread:

Sentiu?

Esse último tópico do artigo pretende então falar tanto da parte da representação da mulher indígena como também do problema da insensibilidade cultural em retratar o “folclore brasileiro” na HQ de Yara Flor. Vamos por partes:

1. O imaginário feminino indígena

Analisando a fala de Alice, é perceptível a forma super consciente que ela afirma que as mulheres indígenas que ela conhece já não confiavam na representação que estava anunciada para o quadrinho. Isso deve ser entendido como um reflexo da homogeneidade da representação da mulher latina na mídia, sendo que a mulher indígena não é só estigmatizada por seu gênero, mas também por sua etnia. Logo, o peso da representação da imagem indígena é mais acentuado, sendo ainda mais grave a consideração de que a mulher indígena brasileira sempre foi tratada como um ser exótico a ser explorado. Desde o primeiro contato com os colonizadores, as populações indígenas brasileiras recebem tratamento marcado pela objetificação, como se fossem um pano de fundo para um cenário “exuberante”, ou, como sintetiza a pesquisadora Sthefane Pereira:

O imaginário feminino indígena, é então, nada mais do que a selvagem bela sem pudor, mística e exótica. Ou seja, uma mulher com exacerbada luxúria, e por isso, símbolo do desejo masculino. […] Nas narrativas cinematográficas, a mulher indígena traduz o imaginário masculino sobre o corpo feminino, colocando-a como objeto de desejo e sexualizada. Nos filmes, sua representação é inferiorizada para atributos como sedutora, com forte apetite sexual, beleza mística, selvagem. […] Quando se trata de filmes dirigidos por cineastas engajados, há um respeito em relação à figura feminina e um cuidado para não se erotizar o corpo da mulher por meio dos tipos de enquadramentos da câmera e gestualidades das personagens. […] Já nos filmes de cunho comercial […] além de reduzirem a figura feminina, desprezaram particularidades culturais de cada uma dessas personagens, estereotipando comportamentos sociais falsos, que não correspondem à cultura de seus grupos étnicos.

A minha crítica para como Yara Flor foi representada enquanto indígena na HQ recai exatamente no segundo exemplo de Sthefane. No entanto, não queria que tomassem apenas a minha palavra sobre isso.

Para compreender esse assunto da forma correta, fizemos o mínimo: conversar com duas mulheres indígenas.

Imagem: Mayra Sigwalt / Foto: Jéssica Liar

A primeira, Mayra Sigwalt, é escritora e produtora de conteúdo. Na opinião de Mayra, além do estereótipo fenotípico, Yara Flor não tem nada de identidade indígena. Nada na construção da personagem indica pertencimento indígena. A começar pela forma como não existe apresentação da personagem que indique a qual etnia, a qual povo ela pertence. No Brasil, muitos povos indígenas conservam o nome de seu povo como parte do “sobrenome”, para que sirva como patrimônio interno transmitido entre gerações. Só conseguiram recentemente o direito de serem reconhecidos como civis por nome de nascimento e um sobrenome que fosse o título do povo ao qual fazem parte, ao invés de nomes aportuguesados (leia mais sobre aqui). Acontece que não tem nada em “Flor” que identifique coisa alguma.

Mayra afirma que esse problema da representação também tem de ser visto atentando ao fato de que existe uma expectativa social de padrão de beleza para as mulheres indígenas e que o uso esvaziado dessa representação, reduzido à estética física, faz com que quem não esteja dentro desse padrão – acolhido como “agradável” ao olhar do homem branco – não seja reconhecida enquanto indígena.

Que aliás é um problema sério considerando a miscigenação que ocorreu entre povos indígenas e não-indígenas, tornando esse reconhecimento ainda mais difícil se a pessoa indígena estiver mais aproximada do fenótipo de pessoas negras.

Em segundo lugar, Mayra também comenta sobre ter ficado chocada com a forma desrespeitosa que a personagem trata um encantado, no caso a Caipora, e os demais personagens da história. Ela explica que a visão indígena sobre a flora e a fauna não é antropocêntrica – animais não são vistos como “base de cadeia alimentar”, e sim como parentes-não-humanos, como entidades que são reverenciadas. Laçar, chantagear e afrontar a Kaapora (versão original do conto aportuguesado) não seria nunca uma atitude esperada de um indígena. Nem com Kaapora e nem com o pobre coitado do pégaso, que é chamado por Yara de estúpido e irritante de forma a parecer um tratamento carinhoso, mas soando como o típico alívio cômico de obras gringas. Para Mayra, isso é um claro reflexo de não ler autores indígenas, não conhecer e não acompanhar pessoas indígenas.

E sinceramente, além de ser desrespeitosa a forma de tratar a personagem, eu também ficaria extremamente ofendida se representassem meus deuses, guardiões ou entidades encantadas com artes que lembram hentai a la lolicon. Só analisar como a autora desenhou a personagem da Caipora:

Imagem: DC/Joëlle Jones
Imagem: DC/Joëlle Jones

Novamente me faltam palavras para comentar essa parte… ¯\_(ツ)_/¯

Imagem: Bruna Miranda / Reprodução: Instagram

Nossa segunda entrevistada é Bruna Miranda, criadora e estrategista de conteúdo. Bruna também foi direta sobre a questão da “identidade” indígena de Yara: é inexistente. A impressão que fica para ela é que de fato ninguém indígena foi consultado no processo, que não houve preocupação em fazer pesquisa ou estudo sobre o assunto com alguém indígena. Primeiro considerando os dois estereótipos que são claramente mais evidentes: o nome Yara, um nome indígena que hoje já não tem tanto significado visto o uso vazio por pessoas brancas, inclusive sendo usado como um dos poucos nomes pensados quando querem “representar” uma mulher indígena; e segundo sobre o fato de que a história se passa no meio da Floresta Amazônica, como se não houvessem povos indígenas vivendo em outras partes do país. Basicamente, é a famosa ligação clichê entre a soma clássica de Brasil + mato + “índio”.

“Não existe uma cultura indígena no país. São vários povos. São várias etnias. Só no Brasil temos mais de 300 povos indígenas. Não houve uma preocupação em conhecer nada disso.

Eu não consigo ver nada indígena em Yara. Essa história não é indígena, não é uma homenagem, não é feita com base em valores ou fundamentos indígenas. Ela foi baseada na visão colonizadora do que são povos indígenas. A visão de objetificar a mulher indígena, a visão de exotizar todas as nossas culturas.”

Para Bruna, isso é “folclorização”: uma apropriação das cosmologias, de figuras espirituais sagradas, de tradições, de cultura e de idioma indígena. São tratadas como se fossem parte do “conhecimento popular brasileiro”, já que, dentro do imaginário do colonizador, para uma pessoa indígena ser considerada “civilizada”, ela precisa se tornar brasileira e deixar de ser indígena. A HQ então pega o que é considerado “exótico” da cultura indígena, usa o “folclore” colonial e vende como identidade indígena.

Quando comentou sobre Caipora, Bruna afirmou que a simbologia que existe por trás de laçar uma mulher indígena, da “mulher pega no laço”, é a do estupro. Durante e mesmo antes do período da colonização, mulheres indígenas eram laçadas para serem estupradas. Se trata de um trauma histórico na vida de muitas mulheres indígenas. Ver Kaapora sendo representada de forma infantil (uma vez que histórias indígenas só servem se forem retratadas como questões infantis) e sendo laçada foi uma maneira clara de demonstrar que a personagem de Yara não foi criada com uma conexão de ancestralidade, com pertencimento indígena, com sensibilidade cultural. E isso coloca novamente em cheque a identidade indígena dela. Yara não tem etnia, não tem nome de povo, não tem o respeito indígena com os encantados – não tem como ser indígena.

“Estaria ok se a história fosse pensada só dentro da mitologia grega, brincando com a origem da Mulher Maravilha. Não ia doer tanto quanto ver, mais uma vez, uma personagem indígena sendo criada só para alimentar um estereótipo.

Ainda mais pensando que é uma história que terá uma distribuição muito grande, com muitos leitores – e ninguém indígena envolvido. Enquanto isso, pessoas indígenas não conseguem divulgar seus trabalhos, muitas vezes não conseguem ter o que comer no dia seguinte. Ver uma pessoa não-indígena ganhar dinheiro explorando todas essas coisas é doloroso.

Não tem nada minimamente verossímil de indígena nessa história. Não tem como isso ser uma homenagem. Não tem como isso ser uma representação”.

Achei importante tomar como exemplo, para finalizar esse ponto da representatividade da mulher indígena, a fala da ativista indígena Raquel Kubeo, em entrevista para a Brasil de Fato:

Agora eu, ou qualquer outra mulher indígena não vai aparecer, por exemplo, numa capa de revista, ou enquanto referência de beleza. A referência de beleza é uma estética branca, uma estética padronizada, até uma estética de cirurgias plásticas, de modificações do próprio corpo. O espaço das mulheres negras agora temos visto que já tem sido maior do que indígenas, mas quanto indígenas ainda estamos invisibilizadas se formos ver isso, no cinema, na TV. Nós consumimos esses produtos também, nós consumimos a mídia, nós consumimos as redes sociais, mas não temos essa representatividade lá. Não temos atrizes, por exemplo, eu trabalho com teatro e com audiovisual também e vejo que há uma ausência.

Eu lembro quando era criança de não ver nenhuma indígena na TV e de que a gente acaba se achando até mesmo feia ou achando que tem que comprar também essa estética branca, e de que a gente cresce pensando que isso nunca vai acontecer.

E o resultado dessa representação, que desconsidera todos os fatores ponderados até aqui, pode ser resumida também nas palavras de Raquel:

Isso reforça essa ideia, esse imaginário, muitas vezes as pessoas podem até não falar, mas vão direcionar esse olhar para isso. Vai aumentar o assédio, legitimar esse assédio, legitimar a violência sexual que nos coloca em vulnerabilidade, que nos coloca como alvo desse tipo de violência.

2. A apropriação da cultura e espiritualidade indígena como “folclore brasileiro”

Nesse ponto da minha pesquisa, sou moralmente obrigada a admitir: nós, como brasileiros, especialmente pessoas brancas, sabemos muito pouco sobre o que o “folclore brasileiro” significa para os povos indígenas. Mesmo como professora, tendo passado o último semestre dando aulas sobre esse folclore para meus alunos do ensino fundamental, com um entendimento um pouco mais aprofundado da tal “mitologia brasileira” (isso só quer dizer que eu tinha conhecimento do básico, como por exemplo a diferenciação das lendas brasileiras que surgiram com origem indígena e com origem estrangeira), meu conhecimento ainda era extremamente superficial. E uma coisa é fato: o que aprendemos nas escolas, hoje, é um ponto de vista colonizador.

O que as pessoas precisam entender nesse ponto é que os processos de colonização, especialmente com a ajuda dos jesuítas, criminalizaram, demonizaram e deturparam tanto o conhecimento quanto as crenças indígenas através de catequização, tortura e coerção – processo denominado como “epistemicídio“, também ligado ao etnocídio, processo de genocídio cultural – numa tentativa de exercer dominação sobre os territórios, corpos e, principalmente, das mentes indígenas. Isso teve um influência direta em como intelectuais brasileiros (como o eugenista Monteiro Lobato) começaram a forjar uma identidade brasileira a partir desse conhecimento indígena, mas tornando-o “civilizado”, transformando-o em “mitos” e “lendas”, implicando que as espiritualidades indígenas eram falsas, em oposto ao que consideravam da religião cristã. E foi assim que não só as espiritualidades, entidades sagradas e deuses indígenas foram corrompidos em reles “figuras mitológicas” ou como “folclore brasileiro”, como também a própria figura da pessoa indígena passou a ser vista como algo estagnado do passado, uma alegoria, uma caricatura, uma manifestação folclórica da “história do descobrimento” do Brasil. Para exemplificar, pode-se citar o Saci Pererê, que foi uma adulteração na história indígena de Jaxi Jaterê. Saci vem com as caracterizações carregadas da mentalidade racista e das teorias raciais eugenistas de Monteiro Lobato (leia mais sobre esse assunto nessa matéria da Hypeness), e a massificação desse “personagem folclórico” produziu um efeito muito negativo: a folclorização suprime tudo o que constitui a entidade Jaxy Jaterê porque retira sua história de contexto, apaga sua origem, sua caracterização, suas epistemologias e sabedorias, deforma e esvazia o sistema de pensamento que a constitui. Transforma em “folclore nacional” para ganhar aceitação.

O vídeo do historiador Edson Kayapó também contribui para esse raciocínio, que transcrevemos abaixo:

Eu diria que folclore são as produções e criações, é até meio redundância, inventadas pelos colonizadores. Folclore é dizer que 1500 é o “descobrimento” do Brasil. Folclore é dizer que o Brasil é o país da democracia racial, enquanto a gente vê terras dos povos indígenas sendo invadidas, as lideranças indígenas sendo assassinadas violentamente. Folclore é dizer que a colonização é pautada numa racionalização inteligente, e que essa racionalidade inteligente produz um progresso, um desenvolvimento, isso é folclore. Olha o rio Tietê, né? O resultado do progresso por excelência. Folclore é dizer que nós povos indígenas atrapalhamos o progresso nacional, né? Querer taxar, querer rotular as tradições, as espiritualidades, as cosmologias indígenas como folclore, definitivamente não corresponde com a realidade.

Dito isso, fica claro que nós, enquanto brasileiros, precisamos conversar mais com povos indígenas para aprender a respeitar seus costumes e espiritualidades, a atualizar conceitos educacionais ultrapassados do nosso sistema escolar, a criar novas histórias e personagens sem apagar epistemologias alheias. Parar de entender “folclore brasileiro” como temos sido ensinados e passar a buscar as fontes reais das raízes culturais do país, que foram roubadas violentamente de culturas indígenas.

E se falta esse conhecimento para brasileiros, quem dirá para estrangeiros.

Novamente no intuito de contextualizar todo esse debate de como a mídia dita comercial não consegue compreender e retratar as populações indígenas dentro de suas complexidades, reproduzindo e reiterando preconceitos acerca dessas pessoas, achei importante trazer o que os pesquisadores dizem a esse respeito. Começando por Daiana Batista, Lucas Silva e Hellen Simas, baseados nesse artigo:

A imagem do indígena na sociedade, bem como na mídia, ainda é carregada de olhar etnocêntrico. O indígena não é valorizado, e os meios de comunicação têm uma tendência a fortalecerem preconceitos contra os povos originários* […]. A mídia, por ter poder de formar opiniões, termina, na maioria das vezes, ajudando a desvalorizar esses grupos minoritários. […] Esse discurso se reforça também na sociedade brasileira que historicamente carrega essa ideologia até os dias atuais. O sujeito não tem voz, porque ele é condicionado à ideologia dominante.

E se todos esses motivos até aqui não são suficientes para inspirar uma pesquisa aprofundada sobre a cultura de uma personagem antes de tentar vendê-la para o público, eu não sei o que mais pode ser.

Em síntese, a mistura grotesca da visão colonial folclórica “brasileira” com a mitologia grega na HQ de Yara Flor é apenas uma desrespeitosa e frustrada tentativa de prestigiar uma cultura, ao mesmo tempo que despreza as implicações sócio-históricas da cultura real que originou essa visão.

A DC deveria começar a levar em consideração que essas pesquisas são fundamentais antes da publicação de histórias que envolvam aspectos reais de culturas de pessoas reais E um bom começo pra isso seria fazer o que a pesquisadora Luísa Montenegro interpreta como importante em questões de representação indígena, demonstrando os motivos de por que qualquer empresa no mercado de entretenimento midiático deveria considerar abrir espaço para grupos historicamente excluídos dos processos decisórios: a) isso coloca essas pessoas em posição de centralidade narrativa e permite que elas se autorrepresentem, b) o olhar interno permite representações mais condizentes com a realidade e menos recheadas de preconceitos e simplificações, c) abrir espaço para uma minoria falar sobre si mesma, decidindo o conteúdo e para quem se direciona sua mensagem, é respeitá-la como parte do tecido social e enxergá-la em sua complexidade.

CONCLUSÃO

Acredito que avançamos o bastante como sociedade para poder afirmar que hoje não basta apenas que mais mulheres ocupem espaço escrevendo e ilustrando quadrinhos, e a HQ de Yara Flor é um claro exemplo do erro nisso.

Uma mulher branca jamais terá a capacidade de, sozinha, conseguir criar algo que represente igualmente todas as mulheres do mundo – não somos todas iguais. E acima de tudo, não deveria ser esperado de mulheres brancas a representação de mulheres não-brancas.

Os recortes de raça e etnia influenciam tudo na sociedade, e devem ser sempre considerados quando o objetivo é criar mulheres que pertençam a grupos minoritários.

Se esse artigo por algum acaso repercutir até o conhecimento da autora, o que gostaríamos que ela soubesse é que sua personagem poderia ter um potencial significativo para muitas mulheres, no entanto…

A ausência do entendimento sobre a representação da mulher latina, do recorte étnico e de um estudo aprofundado da cultura indígena tornam Yara apenas uma versão vazia, desnecessária e impertinente da Mulher Maravilha.

Da forma como está, a HQ é um desserviço. Já que a DC não fez o mínimo esperado, chamando alguém que entende do assunto na pele para poder criar ou orientar a criação de uma representação não ofensiva (como foi o caso da America Chavez, por exemplo, escrita por Gabby Rivera para a Marvel), o que resta para Joëlle Jones fazer, caso ela realmente tenha interesse em resolver esses problemas de forma justa, é uma consultoria bem longa e produtiva com ninguém mais, ninguém menos que uma mulher indígena brasileira. Valorizando, creditando e demonstrando ter entendido essa conversa – mais do que apenas conversar com “amigos artistas brasileiros” para se aconselhar e muito mais que fazer promessas vagas de que “as perguntas serão respondidas no futuro”. Até por que, pelo que vimos até aqui, não é uma questão de perguntas não resolvidas, mas de má representação decorrente de ignorância.

É preciso lembrar autores que queiram criar personagens minoritários que garantir visibilidade é evitar a perpetuação de estereótipos. E que isso é o mínimo em uma HQ sobre uma mulher pertencente a um dos grupos minoritários mais vulneráveis do Brasil.


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