Diálogos com uma psicóloga

Para aqueles e aquelas que não assistiram a última temporada de She-Ra e odeiam spoilers, podem parar por aqui. Ainda que esse texto não seja uma crítica à série, vou falar disso e não quero ser estraga prazeres. 

Eu sei que a She-Ra é indicada para 10 anos, mas a classificação etária as vezes é polêmica, assisti a alguns episódios e achei que estava possível para uma criança de sete anos. Minha preocupação maior eram as cenas violentas, mas achei que tudo bem, enfim.

Ela assistiu a primeira temporada, a segunda, todas, esperou a última. E adorou tudo, segundo ela mesma.

O que você gostou na She-Ra?

“Eu gostei que tem de tudo. Quase morte, quase vida, muita aventura, e eu tive medo mas também gostei muito. Gostei do fim também, porque ela quase morre mas ela des-morre.”

Pasmem. Ela nem fala sobre a questão de Adora e Felina ficarem juntas. Nem sobre os pais do Arqueiro. Nem mesmo sobre o outro casal LGBTQ+.

O que podemos pensar sobre isso? O que quisermos, verdade, mas acho que tem pontos bem importantes aí, para além de ela provavelmente estar tentando entender a finitude e a morte.

Para ela, os casais serem gays não tem a menor importância. Ela já sabe que existem casais de variados tipos, ela estava muito mais interessada no que ia acontecer com as personagens, se elas iam sobreviver, se conseguiriam derrotar o irmão do Hordak e assim vai.

Não tem nada demais no que estou dizendo, mas no final das contas, talvez seja isso: por que temos uma sociedade que se ocupa tanto com preconceitos em relação a quem é LGBTQIA+? Tenho cá minhas teorias, a psicanálise tem outras que gosto, mas não importa muito. Importa que a sociedade se ocupa. E isso faz com que a população LGBT tenha que se ocupar em se preocupar com direitos, com visibilidade, com representação, com se proteger de todo tipo de violência.

Obriga pessoas a lutarem pelo direito de se sentirem pessoas. Porque é disso que estamos falando. Fingir que algo é invisível não faz sumir, mas faz parecer que não está ali. Ou que não deveria estar. E isso é bem violento.

Li sobre uma outra série do Netflix, que é classificada como livre, que mostra duas meninas se beijando quando entendem que o mundo vai acabar. A mãe de um menino de quatro anos fez uma reclamação sobre a indicação, dizendo que a criança está em formação e que seria influenciada.

Não consigo imaginar uma reclamação se fosse um menino e uma menina se beijando. Então tá combinado. É inadequado somente quando é algo não heterossexual.

Cada mãe está preocupada com alguma coisa, eu me preocupo com o grau de violência que ela é exposta, ou mesmo cenas sexuais explícitas, pois entendo que de fato ela não tem ainda como processar algumas cenas. As primeiras vezes em que viu cenas de desenho mais violentas ou tensas teve dificuldade de dormir. Descreveu medo.

Mas um beijo gay não assusta, nem traz questão. Talvez porque não tenha importância. Quem dá tremenda importância somos nós.

Uma coisa é o desenvolvimento de uma criança, entender que se namora quando é adulto, que falar sobre sexo é importante conforme isso surgir – porque sim, nossos filhos e filhas vão fazer sexo quando crescerem – e, inclusive, que elas, crianças, precisam saber que o corpo é delas e que ninguém tem o direito de mexer nesse corpo, para que saibam se proteger de investidas fora de lugar. Não falar sobre isso não as protege, muito pelo contrário. Fingir que tudo isso não acontece só as deixa mais desamparadas, inclusive.

Nada disso tem a ver com escolha de objeto.

Lembra quando você parou e escolheu que ia ser heterossexual? Não?

Nem você, nem ninguém.

Porque não é assim que funciona.

As escolhas são inconscientes e uma cena de beijo gay não vai ter importância alguma, bem como uma cena de beijo hetero. No final, é tudo beijo. E, se a gente permitir, pode ser tudo demonstração de afeto.
Porque eu tenho uma novidade: não dá pra controlar se o seu filho ou filha será gay, hetero, bi, pan, assexual ou enfim. Nem se ele ou ela vai experimentar x ou y.

O que dá pra cuidar é que ele ou ela sejam respeitosos consigo e com os outros, que saibam que a diferença existe e que isso não implica em menos nada, nem em menos direitos (a primeira vez que minha filha ouviu que as mulheres ganhavam em geral menos que o os homens, ficou possessa e não conseguia entender o porquê).

Que isso implica diferença. Somente. E isso se faz no dia a dia. Comum, banal.

Todas as vidas importam? Então precisamos cuidar para que algumas deixem de importar menos. Porque a linha não é mesma pra todos. Não adianta fingir.

O inferno são os outros, acontece que somos também os outros de alguém. E estamos juntos nesse mundo, por mais que tentemos negar.

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