Muitas curiosidades sobre a série <3

Yamazaki Kore é um sonho de mangaká. E isso não apenas por ela escrever histórias comoventes e fascinantes que combinam um ritmo calmo e planejado com seus personagens cheios de cores, mas também por saber como fazer sua pesquisa! Suas duas principais séries, Frau Faust e Mahoutsukai no Yome, apresentam um profundo conhecimento sobre crenças medievais sobre magia e bruxaria, bem como o folclore das Ilhas Britânicas e Alemanha – sendo Mahoutsukai no Yome a que possui mais conteúdo nesse sentido, junto a uma adaptação maravilhosa para anime. E é nela que vamos nos focar para entender de onde Yamazaki extraiu essas informações sobre folclore e crenças. A história gira em torno de Elias Ainsworth, um mago, e Chise, comprada para ser sua noiva, em um mundo cheio de magia ancestral e criaturas fantásticas, como explicamos em detalhes no link citado acima.

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Enquanto alguns elementos da história foram criados para imergir uma audiência contemporânea em um universo medieval, outros foram retirados diretamente das crenças de civilizações medievais e pré-cristãs. E como conhecer um pouco mais pode tornar uma história conhecida ainda melhor, vamos dar uma espiada em alguns dos locais onde a pesquisa da autora trouxe elementos mais fiéis. Como a pesquisa original foi feita com fontes escocesas, muitas das palavras podem estar mais próximas do gálico escocês do que do gálico irlandês (Sith, por exemplo, pode ser grafado “sidh” na variante irlandesa).

Usuários de Magia

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Apesar de não haver um bruxo específico registrado na história com o mesmo nome do protagonista, o nome “Elias” possui uma história interessante. Ele é cognato ao nome bíblico “Elijah”, que significa “meu deus é Javé”. Isso é fascinante porque a mitologia dos “usuários de magia” de hoje buscam informações nas tradições wiccanas e druídicas, e há uma clara influência judia ortodoxa no nome de Elias. Mais importante para a história, Elijah foi um nome particularmente popular nas histórias medievais, não apenas por conta do personagem bíblico, mas também por ter sido atribuído a diversos santos cristãos, sendo que dois deles foram decapitados. O crânio que cobre a cabeça de Elias faz direta referência a isso. Mas o fato de não haver registros de um bruxo conhecido por esse nome não quer dizer que a autora não se inspirou em pessoas reais para criar o personagem. Albertus Magnus (1206-1280) foi uma das inspirações, devido ao fato de que ele supostamente havia conseguido criar criaturas como homúnculos. Como diversos outros bruxos medievais, Magnus era um alto membro da igreja, o que cria mais uma ligação com o nome Elias e revela uma contradição: muitos dos “bruxos” do mundo medieval eram membros da igreja ou cientistas. Isso explica a relação de Elias com a igreja no início da história. Com o pouco que sabemos dos métodos e estudos de Elias, seu personagem é evidentemente baseado na simples ideia do que seria “rotulado” como um mago no mundo medieval, algo levado ao tempo de Chise apenas por conta de sua profunda ancestralidade.

Fadas Caninas

Ruth

De forma similar a Elias, o familiar de Chise, Ruth, também surgiu de diversas fontes. A ideia de um “familiar” é uma das mais conhecidas pelos fãs – uma espécie de espírito ou fada que ajuda um usuário de magia em seu trabalho. Mas a grande maioria das pessoas pensa em gatos (especialmente gatos pretos voando na parte de trás da vassoura de suas bruxas), mas a forma canina de Ruth é, na verdade, algo bastante frequente no folclore das Ilhas Britânicas. Enquanto Yamazaki se refere a ele como um “grim”, há muitos black-dogcachorros mágicos no folclore britânico, desde o cão Cafall do Rei Arthur até Bran, o cão do herói irlandês Finn. O folclore escocês nos conta sobre os “cu sith” (cães-fada), que foram uma fonte de inspiração para Ruth. Os cu sith são bestas enormes, do tamanho de um bezerro de um ano e possuem pelo longo e esverdeado. Com suas caudas trançadas e velocidade absurda, eles ao menos possuem o costume de dar um latido de alerta, que eco de forma sobrenatural.

Eles dão duas chances para você fugir e se houver um terceiro latido, acabou para você. Eles são a fonte provável do famoso Cão dos Baskerville, de Arthur Conan Doyle. Mas o mais interessante é que eles também foram uma das inspirações para Ruth. A palavra “ruth” no inglês antigo, significava “pena”, e uma vez que os cu sith têm pena de suas vítimas, o nome que teoricamente seria feminino, foi dado ao personagem para atribuir a ele essa qualidade. Outras fadas caninas que podem ter influenciado são o trio de cu sith Fios, Luatha e Tron, que representam respectivamente o conhecimento, a rapidez e a indolência (sim, não faz muito sentido), em uma possível referência às características de cães de caça. Na mesma linha, tempos os galeses “Cwnn Annwfn” (cães do outro mundo), os cães que correm com a “Caçada Selvagem” (lembram de Witcher 3?) e perseguem as almas das pessoas ruins. “Caçar implacavelmente o mal” parece uma característica interessante para um familiar, não?

Fadas Felinas

Você já deve ter visto o arco da Dança das Fadas em Sword Art Online ou qualquer outro show que aborda a mitologia Celta, você já deve conhecer os cait sith (ou gatos-fada), e como já mencionado anteriormente, eles são a figura padrão do familiar de bruxo.

Mahōtsukai no Yome definitivamente sabe disso e o quarto episódio do anime introduz na história o Rei Gato. De acordo com o livro da Lady Francesca Speranza Wilde, “Lendas Anciãs, Talismãs Místicos e Superstições da Irlanda” (1887), um Rei Gato não existe como um Rei de fato, mas parece passear por ai como qualquer outro gato doméstico. (Ela (wtf) recomendava que as pessoas tentassem cortar um pedaço da orelha de seus gatos, afirmando que se ele gritasse em uma voz humana, as pessoas encontrariam o Rei Gato – parece óbvio mas NÃO FAÇA ISSO, OK?). mahoutsukai 2

Deixando títulos e realeza de lado, gatos são utilizados como representação simbólica do inimigo do Rei Arthur, Mordred, por conta de sua reputação mágica bastante ruim. Mais especificamente, na variação francesa da lenda Arthuriana, Chapalu (uma forma errada ou antiga de se escrever “chatloup” ou do galês “cath palug”) derrubou Arthur em um lago antes da conquista da Inglaterra. Essa é certamente a inspiração por trás do episódio quatro e seus capítulos correspondentes no mangá. O Rei Gato pode ser o próprio Chapalu e o mergulho de Chise no lago parece uma versão paralela do conto do Rei Arthur. De forma curiosa, o gato galês cath palug também é associado com a água. De acordo com a lenda, quando a fada-porco Henwen foi perseguida até a beira do mar, acabou dando a luz a uma ninhada de gatinhos. Eles então entraram no oceano e nadaram para longe, sendo que um deles se tornou Cath Palug. Os outros gatinhos viraram a “murchata” Irlandesa, um grupo de felinos ferozes do tamanho de cavalos que devoravam peixes e humanos que cruzassem seu caminho. (E por mais que essa história de gatos aquáticos pareça muito estranha, existe uma raça de gatos que gosta de nadar, os gatos Van Turcos. Há também uma série de livros chamada “The Purrmaids”, que conta a história de gatos-sereia, mas isso fica para outro post). O ponto mais interessante da mitologia celta dos gatos-fada é a sua natureza problemática e instável – como acontece com a maioria das fadas, você nunca sabe o que vai acontecer quando um cait sith entra na história. Olhando por esse lado, faz muito mais sentido Chise ter um cu sith como familiar, já que com uma fada-cão, você tem mais chances de saber o que vai acontecer.

Outras Fadas e a Terra das Fadas

Na segunda temporada do anime, Chise acaba viajando para a Terra das Fadas. Se você já leu um pouco de mitologia britânica, especificamente da Irlanda, você sabe que isso não é grande coisa, ainda que retornar do mundo das fadas possa ser bastante difícil. mahoutsukai 3

Parte disso acontece porque o tempo corre de forma diferente lá, algo que foi mostrado no conto medieval escocês de Thomas, o rimador, que acreditava ter passado três anos no mundo das fadas, mas descobriu que cada ano lá equivale a sete no mundo real. Muitos contos escoceses e irlandeses discutem o fato que se você comer alguma coisa no mundo das fadas, você se torna incapaz de voltar, o que remete ao conto greco-romano de Perséfone.

As fadas costumam ser divididas em diversas categorias, sendo as “seeley” as boas e as “unseeley” as más. Como qualquer grupo, porém, não é fácil simplesmente colocá-las em duas categorias e muitas das fadas são muito mais cinzas do que “preto ou branco”. Por exemplo, as “leanan sidhe” na história são musas místicas que drenam a vida de seus amantes em troca de habilidades criativas. Isso não é algo que elas queiram, é claro, mas apenas a sua própria natureza e esse aspecto Yamazaki utilizou particularmente bem. As banshees são um pouco mais conhecidas e tratadas como prenúncios de morte, mas elas não são exatamente ruins. Elas apenas fazem o seu trabalho e a única coisa que as torna ruins é a concepção negativa da morte. Existem realmente espécies de fadas para praticamente tudo. As brownies, que são famosas, ajudam a proteger os lares. E apesar de não termos conhecido muitas delas na história, talvez possamos esperar que algumas um pouco mais interessantes possam surgir na história. Os mahoutsukai 4

Gancanagh, por exemplo, que são fadas masculinas que seduzem jovens mulheres, ou os Clurichaun, pequenas criaturas que bebem todo o seu vinho e assombram o lugar onde você guarda sua bebida.

Os mitos das fadas são alguns dos mais importantes do folclore britânico e Yamazaki mal tocou a superfície com os vários presentes em suas histórias e personagens. Então ainda há muito que pode ser debatido com esse artigo. É um tema que vale muito a pesquisa, caso você tenha curiosidade. Em boa parte, a autora se mantém próxima a personagens que já conhecemos, como Oberon e Titania como rei e rainha das fadas, popularizados pela obra de Shakespeare, Sonho de uma noite de verão, mas há outros que podem reivindicar esse título. Esse tema poderia ser muito explorado na história.

Magia

Mas e a magia e magos em geral? Como vocês podem imaginar, existe muita coisa a se debater sobre esse tema e cada cultura possui uma versão própria sobre o que é a magia e como ela funciona. Hoje em dia, acabamos ligando a magia a elementos wiccanos e druídicos, ou talvez a um estilo tipo Macbeth, da bruxa com um caldeirão, vassoura e familiar. Mas é importante lembrar que a magia é ligada a crenças religiosas e práticas, que durante a ascensão do cristianismo, acabaram se não demonizadas (como o Vudu, por exemplo), relegadas ao nível de superstição ou truques de circo. É uma combinação dessas três coisas que modela a magia e os rituais em Mahōtsukai no Yome e as práticas de Elias são amarradas em questões de alquimia, magia celta e alguns elementos de outras culturas. Em seu raro texto de 1928, “Os Ensinamentos Secretos de todos os meus anos”, Manly P. Hall descreve a magia como sendo:mahoutsukai 5

“…a arte anciã de invocar e controlar espíritos pela aplicação científica de uma certa fórmula. Um mago, coberto pelas vestimentas santificadas e carregando uma varinha inscrita com figuras hieroglíficas, pode pelo poder contido em certas palavras e símbolos, controlar os habitantes invisíveis e elementos do mundo astral”. Essa é uma boa forma de resumir a forma que Yamazaki utiliza a magia em sua história. A aparência de Elias certamente sugere “vestimentas santificadas” e ele definitivamente faz muito do que Hall descreve. Sua definição tenta cobrir basicamente todo tipo de magia e seu texto apresenta o mundo antigo através de seu presente. Ele aponta que na idade média, muito da magia era conhecida como a “pseudociência da alquimia”, que possuía muitos adeptos de renome e de classes sociais altas. Simplificando, o período medieval foi uma época em que a magia e a ciência se misturavam de formas interessantes, e temos algumas indicações que talvez Elias tivesse vivido nessa época, apesar do corpo central de sua magia derivar da mitologia Celta.

Druidas eram os principais praticantes de magia nas Ilhas Britânicas, e entre os diversos poderes a eles atribuídos estavam o controle do tempo, mudança de forma e invisibilidade. O aspecto da mudança de forma é particularmente relevante na segunda metade do anime, quando Chise recebe a pele de raposa e consegue se transformar naquele animal. Enquanto existe uma tradição mundial de transformação por pele de animal, a raposa de Chise é uma combinação interessante do oriental (que utiliza raposas mais frequentemente em sua mitologia) e ocidental, onde as mulheres se transformam utilizando a pele de um animal, como na lenda das selkies na Escócia e Irlanda. Selkies são mulheres (raramente homens) que utilizam a pele de focas na água e as removem para voltar a ser humanas na terra. Na maior parte das lendas de selkies, um homem tenta manter uma mulher selkie presa como sua esposa, escondendo a sua pele de foca. A experiência de Chise é o oposto desses contos – ela é presa involuntariamente na pele de raposa, quase fugindo para a floresta apesar de sua vontade de ficar com seu marido. É um bom exemplo de como Yamazaki conta com sua pesquisa, mas dá uma forma única e original à história, moldando-a para agradar um público japonês enquanto mantém o tema da história bastante universal.

Práticas médicas também costumavam contar com elementos de magia, com tinturas e poções coexistindo com sacos de ervas ao redormahoutsukai 6 do pescoço. O fato de Elias e Chise utilizarem uma variedade de misturas com diversos propósitos através da história encaixam perfeitamente com isso. Textos médicos antigos eram conhecidos como “herbais”, significando que contavam com ervas e outras plantas que cresciam no jardim de suas casas. Muitos de nós conhecem algumas plantas que servem para tratar certos problemas. Passar aloe vera em uma queimadura, chá de boldo para dor de estômago ou até mesmo algumas receitas peculiares, como engolir uma aranha envolta em uvas passas para curar malária ou ovos com urtiga para acabar com insônia (por favor, não tentem fazer isso). Até mesmo cocô de ganso espalhado em um bife já foi tratado como cura para a calvície. Felizmente para a história, Elias não confia apenas nessa variedade de medicina das lendas. Em vez disso, ele ensina Chise a fazer poções não apenas misturando ingredientes, mas de fato entendendo o porque de cada elemento causar aquele efeito. É mais mágica como estamos acostumados, somado à crença druídica que as varinhas fazem as coisas funcionarem melhor, e ainda um pouco mais realista do que acidentalmente descobrir que um tipo de chá maluco tomado na madrugada no meio do verão vai curar sua febre. Além disso, é mais fácil de se conectar às crenças populares que canja de galinha pode curar todo tipo de doença, algo que praticamente toda cultura tem sua variação.

Mahoutsukai no Yome é uma boa história por méritos da autora, mas é ainda mais fascinante quando você começa a buscar as fontes de algumas informações. Da farmacologia antiga até o verdadeiro Rei dos Gatos, cada ponto na história tem um pouco a ser descoberto sobre a profundidade da pesquisa de Yamazaki. Esse texto é uma breve exploração de apenas algumas das potenciais fontes.

Se você souber de mais alguma, deixe um comentário para a gente!


Traduzido e adaptado da AnimeNews.

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