Nunca resolva nada em um jogo de damas!

Uma das definições de crescendo é um aumento gradual de força ou de quantidade de barulho (ou de instrumentos). The Secret of Spoons, segundo episódio de Deuses Americanos, propõe exatamente isso: acoplamentos e alargamentos, seja no tom das cenas, na apresentação de personagens, ou na confusão que pode causar nos espectadores – que acompanham juntamente com o protagonista, Shadow Moon, uma entrada lenta para um mundo desconhecido, estranho, e, assustador.

Talvez você se pergunte se o caos e a obscuridade sejam intencionais. E, sim, cara (o) leitora, eles o são. Um dos primeiros pontos que Deuses Americanos incute (tanto no livro quanto na série) é que a ligação com o oculto e o sublime raramente é somente alada ou angelical. O universo do desconhecido pode trazer o voo perfeito de um divino soberano, mas também carrega as entranhas e o sangue que é imanente do que nos faz humanos. Assim, no segundo episódio, passeamos entre personagens que remetem às estrelas, e que remetem ao subterrâneo. Essa distinção, inclusive, entre deuses olimpianos e deuses ctônicos (de debaixo da terra), pode ser vista em diversas mitologias – mas não acredite que os deuses alados são apenas bonzinhos, e os subterrâneos, apenas mauzinhos, porque você pode se decepcionar.

americangods22

Além de apresentar essa dicotomia brilhantemente em termos simbólicos, a série também a exibe em termos técnicos: das tomadas de super zoom, à centralização de personagens na tela, da escolha da paleta de cores, até o roteiro brilhante, que, ao meu ver, superou-se nesse segundo capítulo. The Secret of Spoons passeia jocosamente entre tensão e ironias, e pode fazer rir ou respirar mais fundo. Trabalha com pequenas inclusões que gritam alto. Essas deliciosas oposições colocadas lado a lado podem ajudar a sensação de confusão, tão importante para que possamos nos sentir imersos aos poucos na temática da obra. Com elas em mente, refletimos sobre algumas cenas:

[spoiler]

americangods26A chegada a terra das oportunidades

Orlando Jones é mais do que uma presença na dela, no papel de Anansi (ou Sr. Nancy), ele é a figura charmosa, que pode libertar o homem de seu niilismo, por meio da luta, e do propósito da adoração. A realidade dura e verdadeira apresentada por ele aos futuros escravos em um navio tumbeiro poderia gerar resignação nos homens ali presentes. Mas é a sua adorável alternativa que começa a pulsar aos poucos: “a raiva nos leva a algum lugar”.

Como os tambores que começam a bater em uma noite vazia, visualizar a morte pela luta, e pela adoração, torna-se a melhor alternativa. Quiçá, a única. Depois, o deus-aranha pode chegar à nova terra, mas sabe bem o que aguarda seus súditos.

americangods27Melhor do que o sangue do sacrifício

Enquanto alguns dos personagens podem apresentar uma salvação para uma vida vazia, outros mostram que sua força está exatamente no mundo oco dos outros. No momento consumista da viagem entre Mr. Wednesday e Shadow – quando o novo funcionário passeia por uma loja – é que mídia se apresenta. Assim, como Orlando Jones, Gillian Anderson é um desbunde, e faz uma caracterização de Lucille Ball de I Love Lucy que será lembrada por muito tempo.

americangods23

Sua premissa, contudo, parece-me mais assustadora do que a de Mr. Nancy – esvazie a sua vida para mim. E, novamente, o realismo aparece, pois é assim, muitas vezes, que optamos passar nosso tempo. Enquanto isso, a série mostra que outros tipos de ritual, que podem parecer mais alarmantes no primeiro momento, ao menos deixam seus fiéis em um êxtase completo. Dentro da vagina de Bilquis está toda uma galáxia de prazer – será eterno? Por fora, a deusa se engrandece e, aparentemente, começa a ganhar uma força que não tinha faz alguns anos (quem poderia dizer quantos?).

americangods21Nos primeiros raios de sol, você se ajoelhará

Essa antissepsia também é colocada na casa eslava, onde moram Zorya Vechernyaya (Cloris Leachman) e suas irmãs, e Czernobog (Patrick Stormare). No mesmo ambiente, temos cenas que me fizeram rir demais – como a leitura da xícara de café de Shadow: “Você vai ter uma vida longa, com muitos filhos”, diz a irmã que conta as mais belas mentiras. “Tão ruim assim?”, replica Shadow. E um sorriso nada confiante aparece de Zorya Vechernyaya – e cenas que me deixaram um tanto apavorada – o sangue no martelo de Czernobog é bem bizarro.

americangods24

Inclusive, tanto roteiro quanto atuação fazem um trabalho incrível em transformar uma figura esquisita, cansada e um pouco risível em um homem cruel, violento e ameaçador. isso tudo em meio a um jogo de damas. A descrição de como ele apreciava matar vacas com precisão e seu martelo deve ter deixado desconfortável o mais salivante dos carnívoros. O que nos leva ao final do episódio, que me deixou com vontade de apertar o botão de “próximo” com a mesma voracidade de Czernobog, mas temos que esperar mais uma cena.
[/spoiler]

Ate lá, abrace a confusão.

A Rany falou sobre o primeiro episódio aqui.

Compartilhe: