Todas as garotas do mundo queriam ser super-heroínas, princesas, rainhas… Eu só queria ser ela:

Mary <3
Mary <3 Imagem: Warner Bros. Pictures

1993, Estados Unidos. Agnieszka Holland, uma roteirista polonesa que deveria ser idolatrada em templos sagrados, punha em cartaz a brilhante ideia de tirar das páginas do livro de Frances Eliza Hodgson Burnett (mesma deusautora de “A Princesinha“) a história de Mary Lennox, trazendo à vida a magia que vivia dentro de cada frase, parágrafo, letra, entrelinha.

Eu tinha apenas dois anos quando isso ocorreu. Conheci o filme aproximadamente 4 anos após. Tornou-se um ritual sagrado assisti-lo ao menos uma vez na semana. Ávida por mais detalhes, busquei o livro. Devorei-o. Descobri que a história cinematográfica alterou uma ou outra coisa das páginas velhas que eu li na biblioteca pública da minha cidade, mas não me deixei abater pela decepção da mudança. Mesmo porque, nunca entendi a briga de quem diz que livro é melhor do que filme, ou vice versa. Acho ambos igualmente bons. É só ser um pouco razoável para entender que nem todo filme pode suportar todos os detalhes de um livro. E também não podemos ignorar o fato de que muitas pessoas provavelmente nem mesmo tinham conhecimento do livro até verem a história nas telonas. É um benefício duplo, uma via de mão dupla essa amizade entre a literatura e o cinema, não é?

A magia habita em ambos!
A magia habita em ambos! Imagem: prettybooks.co.uk

Mas minha nostalgia da história começou de um jeito simples: ganhei um gorro de presente e voltei anos na minha infância. Minha primeira referência pra gorros são os que a protagonista do filme usa. De imediato, senti uma nostalgia tão boa da história que quis ouvir de novo as músicas do filme, de autoria de Zbigniew Preisner (outra criatura que deveria estar no Olimpo junto aos deuses gregos). Acho que essa nostalgia de coisas do passado se deve à algo chamado reminiscência de infância, já ouviu falar? São memórias que ficam embutidas em nossa mente de maneira difícil de se fazer esquecer ou separar. Lembranças que de vez em quando vêm te visitar, sem aviso nenhum.

E o engraçado de “O Jardim Secreto” é que a história foi tão especial para mim que sempre as memórias vêm em tamanho família. Meus sonhos, brincadeiras ilusionistas e aspirações contornavam tudo o que eu sabia sobre a história. O meu quintal era transformado em um enorme e encantado jardim. Quando minha família ia para o sítio, eu me esquecia dentro do enredo, caracterizando-me fantasiosamente de Mary Lennox. Cada pequeno detalhe me encantava, como se realmente houvesse uma magia nela, magia tão belamente ilustrada na história, e eu sentia como se essa magia me contagiasse e me mudasse.

Mas vão aqui algumas informações interessantes que acho que todo mundo deveria saber: Frances Burnett publicou o livro em 1911, quando se mudou para Londres. A inspiração veio de Maytham Hall, uma mansão num condado inglês chamado Kent, que continha uma série de jardins murados e um jardim de rosas.

maytham4 Maytham Hall 3 Maytham Hall

Apesar de viver e se inspirar na Inglaterra, sua paixão pela Índia era demonstrada claramente por seus contos recheados de uma fantasia aventureira e de uma sedutora feitiçaria. Embora a última dê arrepios em algumas pessoas (minha mãe por exemplo sempre foi uma dessas pessoas – ela inclusive cortava a cena do feitiço no filme gravado em videocassete), a que estamos falando é muito menos sombria do que vocês imaginam.

Fran <3
Fran <3

A sua reputação como escritora de livros infantis foi forte e popular, sendo inclusive citada por vários críticos literários como alguém superior neste quesito. E quem sou eu para discordar? Capazes de capturar a atenção e o coração de leitores infanto-juvenis e adultos após séculos de publicação, é realmente louvável que suas obras tenham tamanha longevidade, algo geralmente dito como incomum para a literatura infantil.

Frances disse certa vez para seu filho Vivian:

“With the best that I have in me, I have tried to write more happiness into the world.”

Como não amar? <3

Nós, fãs da história, sabemos que esse desejo da autora se tornou realidade. Desconheço alguém que tenha visto esse filme na infância e desgostado, sinceramente. Conheci algumas crianças da minha idade que desgostavam do livro por ser leitura obrigatória na escola. Nesses casos, não consigo tirar deles a razão. Qualquer coisa que você tenha de fazer obrigado tem suas chances de identificação reduzidas pela metade, suponho. Lido através do despertar do interesse, sua narrativa trazia à tona todo o poder da imaginação e à noite, adentrava os sonhos.

A obra cinematográfica de Agnieszka tirou da trama um pouco da dor realística de Frances, provavelmente causada por vestígios da falta que ainda sentia do filho Lionel, morto pela tuberculose muitos anos antes.  Os pais de Mary Lennox, por exemplo, são mortos no enredo do cinema por um terremoto causado na Índia e não por uma epidemia de cólera. Embora as epidemias de cólera fossem comuns em regiões de acampamentos e aglomeração humana, onde as condições de higiene e saneamento básico são precárias ou inexistentes, Agnieszka preferiu um morte talvez menos dolorosa aos negligentes pais de Mary Lennox. Cenas adiante, a protagonista desembarca de seu navio na Inglaterra, em Liverpool, para morar com Lorde Archibald Craven, seu tio, na mansão Misselthwaite.

Colocarei aqui uma breve sinopse para quem não conhece o filme e que estes fiquem daqui para frente avisados de que posso comentar coisas que venham a ser spoilers. Melhor ler depois de ver o filme ou ler o livro, nestes casos.

“No início do século XX, Mary Lennox (Kate Maberly) vivia na Índia com seus pais, que não lhe davam muita atenção. Porém um terremoto os mata e, seis meses depois, Mary desembarca em Liverpool, na Inglaterra, para viver com Lorde Archibald Craven (John Lynch), seu tio, na mansão Misselthwaite, uma construção misteriosa cheia de segredos e antigas feridas.

A mansão é administrada pela Sra. Medlock (Maggie Smith), uma rigorosa e fria governanta. Lorde Craven perdeu a mulher há dez anos e nunca mais conseguiu superar a tragédia. Para piorar, Mary escuta barulhos estranhos que parecem como se alguém estivesse chorando em algum lugar na mansão. Mas ela é proibida de explorar o lugar ou de fazer perguntas.

Mais uma vez negligenciada, Mary passa a explorar a propriedade e descobre um jardim abandonado. Entusiasmada com a descoberta, Mary decide restaurar o lugar com a ajuda do filho de um dos serviçais da casa. E um dia acaba descobrindo de onde vinham os estranhos sons de Misselthwaite:  o pequeno e franzino Colin Craven (Heydon Prowse).

Juntos, eles desafiam as regras da casa e o velho jardim se transforma em um lugar mágico, cheio de flores, surpresas e alegria. O Jardim Secreto é um lugar fantástico onde a força da amizade pode trazer de volta a beleza da vida. “

Devo e me sinto na obrigação de acrescentar aqui pequenos detalhes do filme que me chamavam muito a atenção e que me faziam assistir ou ler a história completamente vidrada e a diferença desses detalhes no livro:

    • A Índia descrita no filme é colorida, animada, fantástica. Me fazia querer viajar para lá e me aventurar naquele mundo de animais, roupas e cenários exóticos. Infelizmente as páginas do livro não compartilhavam a mesma realidade, embora ainda não deixassem de transparecer que apesar de tudo, aquele local era encantadoramente sobrenatural.
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    • A relação pouco amorosa dos pais com Mary me intrigava. Eu me deixava identificar por alguns detalhes que pensava serem semelhantes à minha realidade. E o primeiro baque de filme: a forma que ela lida com a morte deles.angry 1angry 2
    • O retrô. Ahh, o retrô… Os figurinos me maravilhavam, o mundo de mulher adulta representado nos pertences antigos da mãe e da tia de Mary me fascinavam. Eu desejava quase desesperadamente crescer apenas para ter colares de pérolas, roupas elegantes e enfeites de mesa como elas tinham. Caixinhas de música se tornaram objetos encantados daí em diante. Pequenas coisinhas que me maravilhavam.  Outra diferença que posso tecer a partir daqui para o livro é a troca de parentesco. No livro, o pai de Mary é cunhado de Archibald Craven. No filme, Craven é cunhado da mãe de Mary, que era irmã gêmea de sua também falecida esposa.
      Figurino de Lilias Craven. Designed by Marit Allen.
      Figurino de Lilias Craven, mãe de Mary. Designed by Marit Allen.
      Alguns dos figurinos de Mary Lennox.
      Alguns dos figurinos de Mary Lennox.

      Sonho de menina <3
      Sonho de menina <3
    • A forma como Mary era recebida quando desembarcava do navio na Inglaterra.Mistress_Mary,_Quite_ContraryÉ uma forma bem “poética” de se praticar bullying, né? Lol. Tudo bem que eu prefiro a versão traduzida da música:


      “Mary, Mary, toda ao contrário,

      Onde está o seu jardim?
      Com tanto musgo e caramujos
      E aias cheirando a jasmim.”

      Essa música é uma rima inglesa bem popular, geralmente cantada em berçários. Como são várias versões e muitas rimas, ela adquiriu várias explicações históricas. Uma delas dizia que a música faz referências à Rainha Maria Sangrenta, o jardim seria um cemitério, para o qual ela mandava as pessoas que morreram por causa dela. Os sinos de prata seriam instrumentos de tortura pra esmagar os dedões e os “cockleshells” eram instrumentos de tortura usados nos genitais. A “donzela” (Maiden) da última frase, era uma referência à guilhotina inventada na época chamada de “a donzela”. Já deu pra sacar o quanto isso soa ofensivo, né? Boa música de se cantar em berçários, haha! Tudo bem que “Boi da cara preta” e “Dorme que a Cuca vem pegar” também não são lá muito boas.

    • Os caminhos secretos dentro da mansão, a arquitetura, a decoração e toda a mansão em si.castle 1 castle 2 castle 3 castle 4
    • O Dickon <3 Ah, sim, meu personagem preferido depois da Mary só poderia ser o Dickon. No livro, ela o descobre ao som de uma flauta que ele tocava divinamente <3 Como sou musicista, isso pra mim é romântico, minha gente! Haha. Eu shippava os dois na alta. Achava bonitinha a conexão que os dois tinham com os animais.
      SHIPPO MERRMO!
      SHIPPO MERRMO!

      O jardim secreto

    • A senhora Madlock. *Caham* Medlock.
      A maléfica Sra. Medlock.
      A maléfica Sra. Medlock.

      Maggie Smith, adorada por muitos pelos seus papéis em Harry Potter, por exemplo, não era a atriz preferida dos telespectadores do nosso filme. A própria deu uma declaração a respeito:“In the eyes of the children, Mrs. Medlock is a monster. She’s desperately trying to be efficient running this extraordinary house. She’s not efficient. She manages it in a rather frantic way. Her main object is to protect the boy. She thinks that’s her job in life. ‘Misguided’ is the best you can say about her. God knows what happened to Mr. Medlock, one daren’t even inquire about it.”

      É engraçado ver a diferença de papéis do livro e do filme. A Sra. Medlock é uma delas. Foi vilanizada no filme, coitada. No livro, era apenas uma senhora lúgubre e mal humorada. Apesar de brigona e rabugenta, ela não era a personificação da maldade como muitas crianças, como eu, foram levadas a crer. Haha.

    • O triângulo amoroso entre Mary, Collin e Dickon. Eu achava bonitinho na época e torcia para o Dickon, claro. Essa coisa de primos juntos não entrava na minha cabeça quando eu era novinha. Sabe aquela coisa imbecil de se dizer por aí que primo com primo dava filho retardado? Poisé, hoje acho isso um absurdo. Vi gente comentando que o amor entre crianças era uma coisa estranha, mas admitamos. Isso é a coisa mais normal do mundo, gente! E se vocês me perguntarem porque eu não torcia para o Colin, a resposta é essa:

      DRAMA QUEEEEN
      DRAMA QUEEEEN
  • A conexão com a natureza, os sentimentos de rejeição de Mary e todos os sentimentos feridos de todos os personagens que afinal são superados, a magia trazendo de volta entes amados com pagamento após o resultado, que nada mais significava a força dos laços e o desejo de um coração puro unindo pessoas e criando finais felizes <3 Os cenários eram lindos, as flores crescendo eram lindas, o jardim criando vida novamente era extasiaste. O final, quando Mary falava que “o jardim era o mundo todo” me emocionava. No livro, a chave do Jardim é encontrada de outra forma, mas ainda assim achei bacaninha.
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    Mas aí o tio Archie a abraça e promete nunca mais abandonar ninguém ou fechar o jardim <3

Por fim, espero que tenham gostado do post!

Últimas notas:

  • Foi produzido um filme que dizem ser a continuação deste, que é “De volta ao Jardim Secreto“, mas achei super fraquinho. Não curti o jardim minúsculo do filme e não curti o enredo do filme. E também não curti porque nesse filme a Mary casa mesmo com o Colin.
  • O filme tem aclamação pela crítica profissional. Atualmente no Rotten Tomatoes a pontuação é de 85%, baseada em 40 avaliações.
  • Aos interessados em ouvir e apreciar a trilha sonora do filme pelos bons tempos, podem encontrá-la aqui.

Veja também: Por onde anda o elenco de “O Jardim Secreto”?

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