A discussão vai muito além de ter ou não o Mushu no filme.

Todo mundo conhece a história da Fa Mulan, animação da Disney de 1998, e uma transliteração baseada nos contos chineses da guerreira Huā Mùlán.

O desenho de 98 teve direção de Tony Bancroft e Barry Cook, com história de Robert D. San Souci e roteiro de Rita Hsiao, Philip LaZebnik, Chris Sanders, Eugenia Bostwick-Singer e Raymond Singer. Foi estrelado por Ming-Na, Eddie Murphy, Miguel Ferrer e B.D. Wong na versão em inglês, enquanto Jackie Chan forneceu sua voz para a dublagem chinesa do filme. O enredo da animação de Mulan se passa na China durante a dinastia Han, onde a protagonista, filha do guerreiro Fa Zhou, finge ser um homem para ocupar o lugar do pai na guerra que combateria uma invasão dos hunos.

O desenvolvimento do filme começou em 1994 quando alguns supervisores da equipe foram enviados para a China a fim de receber inspiração cultural e artística.

A Disney tomou algumas liberdades para contar sua versão da história de Hua Mulan, e mesmo cuidando para não ofender a cultura do país, causou um certo descontentamento entre a maior parte do público chinês. As crianças pareceram gostar, mas a bilheteria da animação no país foi um fracasso.

Mesmo assim, a Disney resolveu incluir a história de Mulan na onda de live-actions que está desenvolvendo de suas animações clássicas. O live-action de Mulan será dirigido pela Niki Caro, com o roteiro de Elizabeth Martin, Lauren Hynek, Rick Jaffa e Amanda Silver. O filme será estrelado principalmente por Liu Yifei como Mulan, Jet Li como o Imperador da China e a famosa Gong Li como a bruxa Xian Lang.

O filme supostamente tem um orçamento aproximado de US$300 milhões, o que o tornaria a obra cinematográfica mais cara já dirigida por uma mulher.

Só que desta vez a Disney decidiu mudar vários aspectos da nova produção com aparente motivação de corrigir os erros do passado e afinal conquistar o público chinês.

Pôster do filme. Créditos de imagem: Walt Disney Pictures

Este artigo tem como objetivo discutir alguns pontos à respeito da animação de 98 e do live-action. Espero que ao final da leitura haja um compreendimento maior sobre quem de fato a animação original da Disney pode representar e quais os prós e contras que podemos esperar da transformação dela em longa-metragem.

Quem me ajudou na construção do raciocínio pra este post foi o Leo Hwan, youtuber e descendente asiático que discute com frequência questões de representatividade e estereótipos asiáticos na mídia brasileira e norte-americana.

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Os acertos da Disney com Mulan de 98

Mulan se destacou no panteão de “princesas Disney” exatamente por apresentar uma heroína diferenciada: uma protagonista que fugia do paradigma feminino de donzela em perigo, mulher fraca e indefesa que espera pelo resgate de seu príncipe encantado.

Fa Mulan foi mostrada como uma guerreira notável, assim como foram personagens da vida real: Joana d’Arc, Maria Quitéria ou Antónia Rodrigues, personalidades históricas conhecidas por se disfarçarem de homens a fim de poder batalhar e defender suas nações.

Ela foi uma das personagens que começou a abrir o caminho para o reconhecimento de outros tipos de personagens femininas em Hollywood, especialmente heroínas. As pessoas começaram a notar e valorizar mais personagens que fossem como Éowyn (O Senhor dos Anéis), Furiosa (Mad Max: Estrada da Fúria), Brienne de Tarth e Arya Stark (Game of Thrones). O modelo de protagonista “tomboy” começou a ser aplaudido por desafiar convenções de gênero.

Outro aspecto similar era o corte no cabelo da personagem, que também representava um momento icônico para protagonistas do cinema: a prática de cortar os cabelos geralmente significava o desprendimento da mulher com as tradições, o passado e concepções conservadoras de feminilidade. E, consequentemente, seu direcionamento para atitudes de bravura.

Mulan se tornou um ícone para muitas meninas de todas as nacionalidades e foi um filme que ensinou garotas a serem mulheres fortes.  Fa Mulan deu passagem para outros filmes com protagonistas como ela, que desafiavam padrões do comportamento feminino: Merida (Valente), Tiana (A Princesa e o Sapo), Elsa (Frozen), Moana, entre outras.

De certa forma, Mulan também serviu para o debate do papel da mulher na sociedade.

Outro enorme acerto, de acordo com Leo, é a questão da representatividade que a animação gerou para descendentes de asiáticos.

Mulan é uma protagonista que se encontra entre o dilema de seguir suas raízes tradicionais culturais ou forjar seu próprio caminho, sua própria identidade – um reflexo do que os descendentes de asiáticos nos EUA, no Brasil e no mundo passam. Graças a isso, Mulan da Disney acabou por se tornar um ícone muito maior e mais significativo para os filhos da diáspora asiática do que para os próprios chineses.

Entre muitas das diferenças ocidentalizadas no desenho, uma das grandes mudanças do material de origem para a versão da Disney é que a jornada de Mulan se torna sobre a autodescoberta individual. Mulan não apenas se junta ao exército por causa da família e do país, mas porque ela quer se olhar no espelho e ver alguém que valha a pena. E isso se conecta em maior grau com a experiência dos descendentes asiáticos que têm um passado vinculado com a tradição, mas que vivem um presente cheio de mudanças, interligações com outras culturas e vivências diferentes dos seus antepassados.

Leo explica, inclusive, que a animação já gerava uma representatividade para os asian americans por ter uma equipe repleta de personalidades que são descendentes de asiáticos: Rita Hsiao, Ming-Na, B.D. Wong, Gedde Watanabe, Soon-Tek Oh,  Pat Morita, George Takei, Freda Foh Shen, James Shigeta, James Hong e Jerry Tondo, por exemplo. Era uma representatividade que atravessava o desenho até atrás das câmeras.

No vídeo abaixo, ele esclarece o assunto com detalhes:

Mas vamos falar um pouco mais sobre isso.

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Os erros da Disney com Mulan de 98

Como já mencionado, o desgosto da China com a Disney e sua versão da fábula chinesa foi real e demonstrado vigorosamente com a bilheteria e com a crítica local.

A insatisfação não foi injustificada: a animação apresentava uma série de imprecisões históricas e inúmeros estereótipos caricatos tanto dos chineses quanto/e, principalmente, dos mongóis e dos manchus, os povos hunos.

Na época do lançamento na China, a BBC lançou uma matéria curta falando do desastre de bilheteria e recepção do filme. A exibição do desenho foi finalizada na província de Hunan, depois de lucrar apenas US$30 mil de bilheterias em três semanas inteiras, segundo a agência oficial local. Essa agência descreveu a versão da Disney da lendária heroína como tendo uma “aparência estrangeira”, dizendo que seus maneirismos eram diferentes demais da Mulan do folclore chinês para que os espectadores chineses a reconhecessem ou se identificassem com ela. Em Xangai, apenas 200.000 pessoas (dentro de uma população de 14 milhões) foram ver o filme – que aliás foi, ironicamente, um dos filmes mais lucrativos da história da Disney em outras partes do mundo. O fraco desempenho também foi atribuído à má escolha do momento de lançamento, uma vez que o filme animado chegou aos cinemas logo após o fim das férias escolares.

Com uma população de mais de 1.2 bilhão, a China representa um dos maiores mercados potenciais da Disney. As relações entre a China e a Disney eram tensas, particularmente desde o lançamento da Disney do filme Kundun, sobre a vida do líder espiritual do Tibete, Dalai Lama. Tem inclusive um artigo inteiro (em inglês) falando especificamente sobre o atrito causado pela Disney com o lançamento de Kundun e a forma como a representação dos chineses no filme gerou muita discórdia.

Feifei Wang escreveu para o HuffPost, em 2017, um resumo de todas as coisas que os chineses criticaram na animação de Mulan: eles não gostaram de como o filme confundia a China e o Japão (que obviamente é um problema seríssimo pra eles) e como ele confundia a tradição chinesa de clã com a tradição de clã dos nativo-americanos (principalmente por causa do uso da palavra “ancestral”). Além disso, ela diz que todo mundo odiava o Mushu da mesma forma que as pessoas odiavam o Jar Jar Binks de Star Wars. Eles não gostaram do interesse amoroso entre Li Shang (que nunca existiu na fábula chinesa) e a Mulan. Eles não gostaram das piadas, das músicas e nem de como Shan Yu atacou a Capital com uma equipe tão pequena. E claro, eles não ficaram felizes com a forma como o Imperador se curva para a Mulan no final do filme, que é algo ridículo se visto pela perspectiva da cultura chinesa (fora o fato de que ela abraça o Imperador ainda segurando uma arma mortal, o que jamais seria permitido). No geral, segundo Wang, eles simplesmente não gostaram MESMO do desenho, acharam insultante. No entanto, Wang acaba justificando um pouco:

Eu acho que não é tanto que o filme animado seja ruim, eu pessoalmente gosto muito dele. É mais sobre diferenças culturais. Afinal, Mulan não estava nem tentando preservar a cultura chinesa. É um filme animado puramente americano decorado com acessórios chineses para torná-lo interessante e exótico. Kung Fu Panda fez um trabalho muito melhor [em representar a China].

Além disso, acho que os chineses sentem-se chateados porque não fomos nós que fizemos ele. Mulan é nossa lenda, e nós não fizemos nada sobre ela, mesmo sendo tão legal e bonita. É como se você tivesse esse tesouro escondido em algum lugar na sua casa, mas você está com preguiça de usá-lo, então outra pessoa o rouba e faz bom uso dele.

Já no caso dos hunos, o problema seria tanto a questão da representação racista quanto de outras imprecisões históricas.

A começar por esta última: de acordo com The Guardian, Átila (que governou o império Huno do ano 434 a 453, quando o império estava mais poderoso), “pode ter sido um contemporâneo de Mulan, se ela existisse”. O problema é que “o limite leste do território de Átila ficava ao redor do Cáucaso, a 5 mil quilômetros do território do norte da dinastia Wei e o impulso de seus esforços militares era para o oeste, para a Europa, e não para o leste, para a China”. Em suma: Mulan não se interessaria em derrotar os hunos… Simplesmente porque eles não estariam invadindo a China.

E o problema da representação era que os hunos da Disney eram um bando de semi-monstros de aparência maligna e bigodes enormes. Seu líder, Shan Yu, tem olhos amarelos afundados, pele cinzenta, dentes de vampiro e garras enormes.

Na internet, descendentes de hunos não ficaram nem um pouco felizes de serem reproduzidos como se fossem bárbaros cruéis e animalescos, enquanto os chineses eram representados como pessoas calmas, limpinhas e boazinhas.

Nacionalistas turcos, descendentes de hunos, fizeram inclusive protestos na época para retirar a animação dos cinemas. “Do começo ao fim, este filme animado distorce e obscurece a história dos turcos mostrando os hunos como maus e os chineses como amantes da paz”disse um deputado ao jornal.

Outro problema próximo disso era que o Shan Yu do desenho era mais ou menos fictício. Houve um famoso guerreiro chinês chamado Xiang Yu, que entrou em guerra com o Imperador da dinastia Han no terceiro século, mas ele não era um huno. Ele não era nem mesmo um Xiongnu, uma confederação tribal da Ásia Central que de fato e, frequentemente, guerreava com a dinastia Han da China no terceiro século. Essa bagunça por si só já demonstra o racismo e a desconsideração da equipe da animação da Disney. Quem quer que os hunos do filme animado sejam, eles têm o direito de estar realmente muito zangados.

***

Com tudo isso em mente, vamos entrar especificamente no assunto do live-action:

Possíveis prós do Live-Action

A parte que até agora tem sido considerada como o ponto mais positivo no live-action é a questão da fidelidade ao conto original de Hua Mulan. Sem dúvidas a escolha de fazer uma versão mais autêntica da balada de Mulan parece ser uma coisa boa. Para melhor compreensão disso, vejam abaixo a tradução da balada, composta por Guo Maoqian:

Click, click, e click, click, click [som de costura]
Junto à porta, Mulan tece,
Quando, de repente, a lançadeira cessa
Ouve-se um suspiro cheio de angústia
Oh, minha filha, quem está em sua mente?
Oh, minha filha, quem está em seu coração?
Não há ninguém em minha mente
Não há ninguém em meu coração
Mas noite passada li sobre a batalha
Eram doze pergaminhos
O Khan sorteará os que irão à guerra
O nome de meu pai está em todas as contas

Ah, meu pai não tem um filho crescido
Ah, Mulan não tem um irmão mais velho
Mas comprarei uma cela e um cavalo e me unirei ao exército no lugar de meu pai
No mercado do leste ela compra um corcel
No mercado d’oeste ela compra uma sela
No mercado do norte ela compra um longo chicote
No mercado do sul ela compra uma rédea

Na alvorada ela se despede da família
No crepúsculo ela se assenta à beira do Rio Amarelo
Ela não mais ouve seus pais a chamarem
Sobre seu travesseiro, as águas sussurram
No crepúsculo ela chega à Montanha Negra
Ela não mais ouve seus pais a chamarem, mas sim os gemidos dos cavalos tártaros nas montanhas de Yen

Ela cavalga milhares de quilômetros rumo à guerra que deve honrar
Ela atravessa altas montanhas como uma águia nas alturas
Das tempestades do norte, no frio que fustiga, ecoa o sino do guarda
A luz fria e azulada do gelo ilumina sua armadura
Generais morrem em cem batalhas
Nosso guerreiro está de volta
Dez anos voaram

Em seu retorno, ela é convocada a ver o Imperador
No palácio, ela recebe a mais alta honra
Ela é promovida ao mais alto cargo
O Imperador lhe concede centenas de milhares em prêmios
O Khan lhe pergunta qual é o seu desejo
Mulan não quer um cargo de Ministro
Mulan não quer nada de extravagante
Gostaria que me emprestassem um cavalo veloz que me leve de volta para casa

Quando o pai e a mãe ouvem que ela está chegando, vão esperar abraçados no portão
Quando a irmã mais velha a ouve chegando, ela corre ao seu quarto colocar um pouco de rouge
Quando o irmão mais novo a ouve chegando, ele afia seu punhal que brilha como a luz e vai preparar porco e carneiro para o jantar

Ah, deixem-me abrir a porta para o quarto do leste
Ah, deixem-me sentar em minha cama para um descanso poente
Então logo tiro a roupa do guerreiro e silenciosamente ponho meu antigo vestido
Junto à janela penteio meus cabelos
Em frente ao espelho pinto meu rosto
E quando saio para encontrar meus companheiros eles estão perplexos e impressionados

Por doze anos lutamos como camaradas
A Mulan que conhecemos não era uma mulher graciosa
Dizem que conhecemos uma lebre segurando-a pelas orelhas
Há sinais para distinguirmos
Suspenso no ar, o macho chutará e se debaterá, enquanto que as fêmeas ficarão paradas, com os olhos a lacrimejar
Mas se ambos estão no chão a pular em liberdade singela, quem será tão sábio para dizer se a lebre é ele ou ela?

Em sua essência, Mulan – o poema, em todas as suas traduções e retrabalhos ao longo dos séculos – trata da piedade filial. Em termos gerais, a piedade filial é sobre amar, cuidar e proteger a família e é o núcleo de muitas culturas chinesas e outras culturas do Leste Asiático.

Como falamos anteriormente, essa jornada da balada de Mulan foi alterada na animação. Não dá pra considerar isso como algo necessariamente ruim (inclusive porque gerou a representatividade para descendentes asiáticos), mas de um jeito ou de outro mudou o contexto da história original – e não é difícil entender o incômodo que isso pode causar nos chineses. Até o nome da família de Mulan foi mudado no desenho! Então, se o live-action vai voltar para as origens do conto, pode ser que desta vez a China aceite o filme por ser algo que os chineses se identifiquem mais. O live-action vai mudar o nome e alguns personagens: a família de Mulan volta a ser Hua e não Fa, o principal antagonista Shan Yu está sendo mudado para Bori Khan, Li Shang está sendo alterado para Chen Honghui, Chien Po é simplesmente Po.

Outro ponto positivo seria a questão do elenco não ser whitewashed. Histórias como Aladdin, Pocahontas e outras animações da Disney que apresentam pessoas de etnias não-brancas não costumavam ter pessoas não-brancas escrevendo ou dirigindo esses filmes. Os live-actions aparentemente vêm tentando corrigir esse problema com uma equipe maior de atores que são realmente representantes da cultura dos filmes retratados (o filme de Aladdin, por exemplo, teve Mena Massoud que é egípcio,  Navid Negahban que é descendente iraniano e  Marwan Kenzari que é descendente tunísio). A Disney afirmou ainda que, no elenco de Mulan, todos os personagens principais seriam chineses: “O estúdio está focando sua busca de elenco na China continental para os principais papéis, incluindo a lendária guerreira”. Uma equipe de diretores de elenco visitou cinco continentes e entrevistou quase 1.000 candidatos de origem chinesa para o papel de Mulan. Os requisitos eram habilidades credíveis em artes marciais, capacidade de falar inglês e um nível de atuação de estrelas.

A terceira questão interessante de se comentar é que o live-action está passando a ideia que vai tirar da história a característica do misticismo asiático, do oriente místico – um estereótipo racista bem antigo. O Nó de Oito explica essa questão minuciosamente e merece muito a leitura completa, mas a ideia principal disso é o seguinte:

E o que é, então, o Oriente, de acordo com o Ocidente? Bem, o Oriente seria um lugar fundamentalmente diferente. Um lugar que tem todos os seus povos e culturas reduzidos a uma massa unificada, habitado por pessoas exóticas, incompreensíveis, inassimiláveis, inflexíveis, e muitos vezes mágicas e selvagens. Em suma, o Oriente foi construído como o Outro perfeito, na medida em que suas características se opõem diretamente às da ‘civilizada’, ‘racional’, ‘moralmente superior’ e ‘humana’ Europa.

Se a Disney for tratar a lenda de Mulan com mais respeito em relação a isso, é definitivamente um ponto positivo. A Disney inclusive deu a entender que a retirada de Mushu da história foi também para respeitar essa questão, levando em consideração que dragões são considerados criaturas sagradas na China.

Ademais, existem informações circulando na internet que o vilão no live-action é na verdade uma mulher: a bruxa Xian Lang. Essa mudança foi feita para tornar o filme mais próximo do gênero wuxia (fantasia literária sobre artes marciais da China antiga) e para acomodar melhor os elementos sobrenaturais da história (como os espíritos ancestrais e o Mushu).

Por fim, a última questão é que o filme seria outra forma de representação feminina. Uma protagonista feminina, asiática, guerreira. Uma mulher forte. Não mais uma personagem estabanada e desajeitada, mas uma lutadora autoconfiante, firme e determinada. Não que ser estabanada e desajeitada seja algo inevitavelmente ruim, mas a representação fica análoga ao conto original e foge de um clichê que é tipicamente norte-americano (também explicado no Nó de Oito).

Tornar  Mulan mais “durona” pra mim é algo maravilhoso.

Mostrar que mulheres têm capacidade de ser fortes sem defeitos gritantes que “justifiquem” essa força é algo importante. Nós precisamos de mais mulheres assim na mídia para gerar uma aceitação maior de heroínas que são autoconfiantes e para que parem de confundir essa característica com “vaidade”, “egocentrismo” ou “prepotência”.

É algo que inclusive já falei aqui no site quando comentei sobre Capitã Marvel, comumente chamada de arrogante: o público de cinema passou décadas observando apenas as concepções masculinas sobre o poder feminino. Mulheres que podem ser fortes, mas não muito fortes (e nunca mais fortes que homens). Podem ser intimidantes, mas apenas se forem sexualmente atraentes. Podem ser duronas, mas apenas se forem vulneráveis. E isso tem que acabar.

Mulan pode ser esse tipo novo de heroína.

***

Possíveis contras do Live-Action

Infelizmente para a Disney, mesmo o trailer do live-action também gerou crítica dos chineses por imprecisão histórica: o conto original de Mulan é sobre uma mulher nascida no norte da China durante o período das dinastias do Norte e do Sul, por volta do século 5 d.C. O período e localização são fundamentais para a história, pois sua jornada começa quando ela vai lutar contra invasores que ameaçam a fronteira do norte do país. No entanto, o trailer  mostra Mulan morando em uma casa redonda conhecida pelo nome de “tulou”: uma estrutura tradicional do povo Hakka, único na costa sul da província de Fujian. Outro problema é que esse tipo de casa se tornou amplamente difundida somente a partir da dinastia Ming – mais de mil anos depois

Segundo a Variety, um estudante chinês expressou na internet um sentimento de incômodo semelhante, afirmando que “este filme está apenas tentando agradar ao público ocidental. É como se eles pensassem, oh, esse elemento é realmente chinês, é muito oriental, então eu vou colocá-lo no filme para fazer com que todos sintam que este é um filme muito ‘chinês'”. E ele continuou:

Essa confusão de misturar elementos orientais não relacionados é realmente desrespeitosa com as culturas e audiências não-ocidentais. Não se trata de [os produtores] realmente apreciarem elementos de uma cultura diferente da de Hollywood, mas usá-los para criar algo que os americanos achem confortável e atraente.

Outra imprecisão histórica foi apontada pela youtuber chinesa Sisi Liao, do canal Pula Muralha: a pintura facial do rosto da Mulan e da casamenteira (méi pó, matchmaker) no trailer não é chinesa, é japonesa. 

O segundo ponto negativo é que (em contraste com o que falamos nos pontos positivos), assim como com aconteceu com o live-action de Aladdin, não há escritores orientais ou descendentes (nesse caso, chineses ou do leste asiático) ligados ao roteiro, e uma mulher branca está dirigindo o live-action.

Por mais que os protagonistas sejam chineses, ter uma direção totalmente branca parece um erro aqui – principalmente levando em consideração os erros históricos que o roteiro já está demonstrando.

Pessoalmente falando, eu acho ótimo que uma mulher esteja na direção de um filme sobre uma guerreira porque isso dá uma perspectiva feminina ao filme, sem perigos de criar problemáticas que acabem sendo machistas ou de alguma forma insensíveis às questões de gênero. E Niki Caro faz um ótimo trabalho nesse sentido, inclusive com um filme que já comentamos aqui no site: Encantadora de Baleias. Mas ainda assim, sem sombra de dúvidas seria melhor se a direção do filme fosse alguém que representasse o país ou seus descendentes.

O próximo problema vem a partir deste último: a Disney vai cortar tudo que representava descendentes de asiáticos fazendo o live-action da forma como está sendo produzido. É importante fazer um filme que respeite os chineses e sua cultura, mas também é importante ouvir o que está sendo dito nessas comunidades de descendentes. Quem iniciou esse diálogo, inclusive para Leo Hwan, foi o Joshua Luna. Na thread abaixo ele explica o assunto.

Temos, por fim, o problema de todo o viés mercadológico para entrar na China que Leo comentou no vídeo dele, postado anteriormente. Yvette Tan e Heather Chen, da BBC, afirmam que cerca de 70% da receita dos estúdios de Hollywood são gerados no exterior, em comparação com cerca de 30%, há duas décadas. E o público chinês hoje é capaz de adicionar milhões às receitas das bilheterias. Logo:

As receitas chinesas podem impulsionar ou quebrar um filme!

E a Disney sabe disso já que está gastando US$300 milhões nele. Isso, somado com os problemas anteriores, gera uma dúvida bem grande: a Disney realmente quer corrigir os erros pela importância da representação ou só quer poder entrar no país, apenas visando o lucro? Por que se for a última opção, a empresa corre o risco de desagradar gregos e troianos.

***

Afinal, quem a Fa Mulan representa e quem a Disney está tentando representar?

Que a representação feminina de Mulan foi importante, nós já sabemos. Mas quando a gente fala sobre representação étnica, entramos num impasse.

Leo e Joshua Luna acreditam que o desenho clássico da Disney representa os descendentes. Para Jingan Young, do The Guardian, uma chinesa que mora nos EUA, o filme tinha uma importância especial, com sua combinação de valores leste-oeste, números musicais que envelheceram muito bem e, claro, uma protagonista foda que chuta bundas. Young diz que ficou muito animada com o lançamento do live-action, mas não concordou muito com a decisão da empresa de tornar o filme mais sério – ela acredita que pra isso os filmes General Hua Mu-lan (1964) e Mulan: Rise of a Warrior (2009) já serviam. Depois de analisar o caso, ela começou a temer que isso seria um sinal de que a Disney estaria apenas tentando se encaixar na agenda nacionalista da China. Young afirma que Mulan parece robótica no trailer e que parece que a Disney está agitando uma grande bandeira vermelha no rosto de todo mundo em seu desespero para garantir o sucesso na bilheteria chinesa e, que na situação política atual do país, isso deixa um gosto amargo para aqueles que acreditam em democracia e liberdade.

É fato que as audiências chinesas são obviamente mais sofisticadas agora. Por isso, se a Disney quiser reconquistá-las, ela precisa descobrir os aspectos culturais atuais de Mulan.

Isso significa que o filme não pode ser uma cópia do antigo desenho. A animação da Disney estava se esforçando muito para ser chinesa, mas de uma forma estereotipada. O humor e os relacionamentos no desenho são totalmente norte-americanos – ou o que os EUA imaginam que a China seria, segundo a BBC. E por mais que desta vez a Disney esteja contratando atores que são de fato chineses, esse é um único fator contra todos os anteriores citados até aqui.

Resta agora saber quais são as intenções da Disney. E esperar pelo melhor.

***

Meu conselho para os fãs brasileiros de Mulan, como mulher branca e brasileira,  é: ouçam mais quem é asiático e descendente (são essas pessoas que são diretamente impactadas pela representação) antes de expor opiniões desprovidas de conhecimento de causa ou de informações averiguadas.

O filme não se chama Mushu e a lenda é sobre a Mulan. Será um filme sobre uma guerreira (o conto original é sobre uma batalha que durou mais de dez anos e tem de fato um tom mais triste. Afinal de contas é uma guerra, não é engraçado), então não precisa ter um dragão em miniatura pra ser interessante. A discussão vai muito além de ter ou não o Mushu no filme, então vamos parar de exigir esse personagem toda hora e pensar na situação como um todo. Vamos fazer o possível para manter a mente aberta, o respeito constante e nossa crítica imparcial de nostalgismo.

Acima de tudo, lembrar que nem tudo é sobre a gente ou sobre o que a gente acha.

O live-action chega aos cinemas brasileiros em 26 de março de 2020, no vigésimo segundo aniversário da animação de Mulan.


REFERÊNCIAS:

BBC NEWS. Chinese unimpressed with Disney’s Mulan

BURWICK, Kevin. Disney’s Mulan Trailer Trashed in China Over Historical Inaccuracies

DAVIS, Rebecca. China Loves New ‘Mulan’ Trailer, Except Its Historical Inaccuracies

IMdB. Mulan (2020)  | Wikipedia. Mulan

TRUONG, Kimberly. 20 Years Later, What Do We Do With Mulan In 2018?

THET, Nyi Nyi. 1998 Mulan bombed at the China box office, 20 years later Disney is trying once again

WANG, Faye. How Is Disney’s Mulan Perceived in China?

WEEKES, Princess. Why a More Legend-Accurate Mulan Is a Huge Win


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