Quem fala que filme brasileiro não presta é porque não conhece o que se é produzido aqui

Durante uma de suas coletivas o presidente do Brasil fez um pronunciamento dizendo que se a Ancine não tiver filtros ele pretende acabar com o órgão. Criticando o uso de dinheiro público para financiar filmes “pornográficos”.

Dos equívocos que essa fala tem, primeiro deve se dizer sobre o papel da Ancine que é regular e fiscalizar as produções audiovisuais e não financiá-las. Segundo sobre a existência de um  filtro, algo que já há. Faixa etárias servem exatamente para esse propósito, filtrar quem essas produções devem atingir. Portanto, uma criança ou um adolescente não irá assistir um filme como Bruna Surfistinha (o qual ele cita como sendo pornográfico).

E por fim, mas por si só o mais importante, “filtrar” produções no sentido de dizer que tipo de filme deve ser produzido, antes mesmo que a ideia saia do papel, nada mais é do que censura. Coisa que o cinema brasileiro já conhece bem. Como arte, ela deve ser livre para abordar o que achar necessário e importante.

O que vemos, não só do presidente, mas de uma massa que responde alegremente nos comentários da notícia  é o baixo apreço pelo cinema brasileiro e pela arte como um todo.

Fica então a pergunta: por que as pessoas consideram o cinema brasileiro tão ruim quando somos reconhecidos internacionalmente?  Cidade de Deus, por exemplo, é considerado o filme latino americano mais importante dos últimos 20 anos. Aquarius foi aplaudido em pé no Festival de Cannes. Bacurau, o mais novo filme de  Kleber Mendonça Filho (também diretor de Aquarius) ganhou o prêmio do júri, também em Cannes.  Central do Brasil ganhou o Leão de Ouro no Festival de Berlim, e foi ao Oscar com Fernanda Montenegro indicada a melhor atriz. Então por que tanta gente comenta displicentemente que “cinema brasileiro é lixo?”

Trailer de Bacurau (2019)

Primeiro é preciso entender pra que serve o cinema em primeiro lugar.  Criado no final do século 19, a invenção não passava de uma mera ferramenta de entretenimento, com histórias curtas e simples, levavam o riso e o divertimento ao público. Depois foi se descobrindo como arte visual, artistas como Méliès, responsável pelo clássico Viagem à Lua (1902),  faziam mágica na tela e começaram a engrandecer essa invenção. Também foi se descobrindo o papel do cinema como propagador de pensamento crítico (que já é algo intrínseco a arte). Foi assim que o cinema se tornou essa  ferramenta tão importante na sociedade.

Bom, o papel da arte é discutido amplamente por filósofos e historiadores, mas vamos focar no papel dela como instrumento de reflexão.  O cinema como arte traz em si visões de mundos diferentes, pensamentos críticos sobre situações sociais cotidianas ou períodos da história, é o fazer pensar, o fazer enxergar coisas que muito provavelmente sozinhos não conseguiríamos.

Claro que livros, músicas, teatro, e todas as outras artes fazem a mesma coisa, mas o cinema tem algo que as outras não têm, que é a facilidade de acesso e a rapidez de propagação. Isso pode ser discutível, pois a partir do momento que virou um mercado, as artes se tornaram elitistas e o fácil acesso não é lá tão fácil em termos de ir ao cinema ou ter acesso a filmes “mais artísticos”, porém a junção de áudio, texto e imagem acaba por trazer um acesso maior a um número maior de pessoas.

Portanto o cinema, seguindo seu papel de arte, vem para nos fazer pensar, criticar, formar opinião. Vem para  representar povos, apresentar novas culturas e discutir nosso papel dentro da sociedade, individualmente ou como coletivo.

E o cinema brasileiro, analisando cinema como representação artística, é extremamente forte e brilhante quando se trata de representar realidades e fomentar pensamento crítico. O Pagador de Promessas (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964),  Vidas Secas (1963), Bye Bye Brasil (1980), Central do Brasil (1998), Bicho de Sete Cabeças (2001), Cidade de Deus (2002), O Som ao Redor (2013) e Que Horas Ela Volta? (2015) todos retratam o Brasil, obras ligadas à realidade sócio cultural e econômica do país. Críticas a pobreza, a seca,  a divisão de classes, o descaso com os mais pobres, violência policial, corrupção. Todos estão ali e todos foram livres para criarem essas histórias e mostrá-las ao mundo.

Sendo assim, o Brasil e o cinema brasileiro são responsáveis por grandes e importantes obras. Se você não escuta falar sobre elas ou nem sequer chegou a vê-las em cartaz, saiba que muito se deve a falta de incentivo.

O cinema afinal é um mercado, precisa de dinheiro para se manter, para ser produzido, para ser divulgado e distribuído. E é isso que o governo faz ou deveria fazer esse tipo de trabalho com a lei do incentivo ou a Lei Rouanet, por exemplo. Lembrando que são empresas privadas que investem nos projetos e podem abater do imposto de renda, não é o governo que financia os filmes.

Por isso muitos filmes não são amplamente divulgados ou distribuídos em grandes salas de cinema. Muitas vezes nem sequer se sabe da existência desses filmes ou por falta de dinheiro para investir. É comum estar em alta filmes produzidos pela Globo Filmes, produtora que tem dinheiro para realizar todas essas etapas citadas.

Por isso não diga falsamente que Brasil não tem filme ou que cinema nacional não tem filme que presta. Não falta filme no Brasil, não falta qualidade, o que falta é incentivo e apreço por essa arte tão rica que criamos aqui.

Vale lembrar também que o cinema de entretenimento não é vazio, contendo críticas ou não ele ainda é válido, afinal não somos obrigados a ser críticos e sérios o tempo todo. Às vezes esquecer dos problemas ao seu redor é importante também.

O cinema nacional é  responsável por uma alta movimentação da economia. Segunda a própria Ancine, em 2014 o setor rendeu 24 bilhões de reais. Bruna Surfistinha, por exemplo, rendeu sozinho quase 20 milhões reais e mais de 10 milhões em impostos (diretos e indiretos como pipoca, bebidas, estacionamento, entre outros). Portanto, seja pelo seu valor financeiro, seu valor como arte ou só o seu valor como entretenimento, o cinema é importante, e precisa e deve ser valorizado!

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